MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - Em pequenos rasgos na terra, feitos em apenas dois pontos na cidade mais indígena do Brasil, arqueólogos encontraram elementos de uma região densamente povoada, com presença antiga e contínua de populações tradicionais -por pelo menos 2.000 anos- e decisiva para a ocupação do restante da Amazônia.

Os achados de pesquisadores de instituições brasileiras em São Gabriel da Cachoeira, no extremo noroeste do Amazonas, contrariam o discurso e o imaginário que atribuem à região -uma das mais preservadas da Amazônia- as características de esvaziamento populacional, de isolamento aprofundado e de desconexão com o restante do território amazônico.

Após dois processos de escavação em 2019 e em 2022, o Parinã (Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico) elaborou os primeiros relatórios sobre as peças encontradas -principalmente fragmentos de cerâmica- no quintal do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e na praça da diocese de São Gabriel da Cachoeira.

Todo o trabalho contou com a participação de indígenas que estudam arqueologia na UEA (Universidade do Estado do Amazonas), curso recém-criado na cidade. O material encontrado nas escavações, as características detectadas e a conexão com a ancestralidade geraram um sentimento de identificação e pertencimento entre os indígenas, segundo os pesquisadores envolvidos.

Esse sentimento foi mais forte entre as mulheres indígenas mais velhas, que notaram semelhanças com a cerâmica desenvolvida por elas na atualidade.

A análise dos fragmentos, levados ao Musa (Museu da Amazônia), em Manaus, envolve uma avaliação de características das fases de ocupação da Amazônia, datações radiocarbônicas -para identificação do período em que aquela cerâmica ou carvão foram queimados- e a montagem de um verdadeiro quebra-cabeça das peças.

O projeto envolve profissionais de arqueologia do Musa, do Museu Paraense Emílio Goeldi, da UFPA (Universidade Federal do Pará), da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), da UCL (University College London) e colaboradores externos.

Segundo os arqueólogos envolvidos, foi a primeira vez que houve escavações em São Gabriel da Cachoeira, uma cidade encravada numa região onde estão 23 etnias indígenas.

Na década de 1990, um trabalho pioneiro foi feito na região, conhecida como Cabeça do Cachorro. A escavação conduzida pelo pesquisador Eduardo Neves foi feita em 1995, e os trabalhos foram concluídos em 1998. Neste caso, a busca por material se deu em terra indígena.

Conforme descrito no projeto Parinã, esse estudo da década de 90 -a única pesquisa arqueológica concluída até então na região- confirmou histórias orais da etnia tariana sobre a existência de uma aldeia fortificada no século 12, muito antes, portanto, da chegada dos portugueses ao Brasil.

Mais de 20 anos depois dessa pesquisa, arqueólogos voltaram à região do alto rio Negro e, diante das dificuldades impostas pela Funai do governo Jair Bolsonaro (PL) para a condução das pesquisas em terras indígenas, os pesquisadores decidiram que as escavações ocorreriam na própria cidade. E assim foi feito.

As conclusões preliminares até agora se referem principalmente ao que foi encontrado no terreno do ICMBio, descrito como um "sítio multicomponencial pré-colonial e histórico a céu aberto".

As escavações se concentraram em dois pedaços da terra de um metro quadrado cada, até uma profundidade de 80 cm. Dali foram retirados 12.127 objetos, principalmente fragmentos de cerâmica (9.114) e material lítico, ou seja, pedras com algum tipo de lapidação (2.881 objetos).

Entre os fragmentos estão peças associadas à Tradição Polícroma da Amazônia, em que há aplicação de cores na cerâmica com características que remetem a um período de 800 d.C. até a chegada e ocupação dos portugueses na Amazônia, nos séculos 16 e 17.

Em algumas peças, há indícios de uso de carimbos para impressão de elementos gráficos.

O material foi comparado ao conjunto cerâmico que continua sendo produzido pelos indígenas da região. "É muito provável que parte do conjunto arqueológico possa ser diretamente associado aos tukanos e baniwas", cita um relatório preliminar.

Algumas características no desenvolvimento das cerâmicas unem os indígenas de antes e os de hoje: o enegrecimento da superfície das vasilhas, a pasta de cor branca na cerâmica baniwa, o uso do caraipé -elemento de uma planta- pelos dois povos.

A decoração no fragmento de uma borda de uma peça tem um grafismo "também reconhecido em gravuras rupestres na região", segundo o relatório preliminar. Essas gravuras estão associadas aos tukanos.

"A região era considerada como sem densidade populacional, mas se comporta como outros locais da Amazônia. Também era considerada como uma área difícil de ser ocupada, mas tem ampla e densa ocupação há muito tempo", afirma o arqueólogo Filippo Stampanoni, diretor-adjunto científico do Musa e coordenador do projeto.

"O que constatamos é que existe um clássico do padrão amazônico: presença da terra preta [conhecida como 'terra preta de índio', resultado de intervenções humanas ao longo do tempo], grande quantidade de material [arqueológico], região habitada de forma densa", diz.

Em Manaus, no baixo rio Negro, peças retiradas de sítios arqueológicos apontam para uma datação de mais de 9.000 anos. Stampanoni diz acreditar que essa datação, na região do alto rio Negro, pode ultrapassar 10 mil anos, caso se avancem as pesquisas. "Encontramos muito material lítico, mais comum em comunidades mais antigas."

A arqueóloga Helena Pinto Lima, do Museu Goeldi, integra o Parinã. Ela diz que a pesquisa vem comprovando a "presença de assentamentos indígenas grandes e densos" na região.

"A Amazônia é colocada como não habitada ou pouco habitada, sem reconhecimento da presença dos indígenas em áreas como o noroeste amazônico", afirma. "A região tem ocupação antiga, de diferentes povos, com datação de 2.000 anos atrás. É uma terra que carrega uma história antiga."

Agora, fragmentos e peças remontadas, carregados de significado para 45 mil indígenas da região, retornarão ao alto rio Negro, para uma exposição no começo de fevereiro na maloca da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) em São Gabriel da Cachoeira.


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