RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - O aniversário de 37 anos de Edgar Alves de Andrade, o Doca, em 2007, foi marcado por um tiroteio de 11 horas contra as forças policiais que tentavam prendê-lo no Complexo do Alemão, zona oeste do Rio de Janeiro. No fim do confronto, ele foi detido.
Na terça (24), o traficante festejou seus 53 anos com uma queima de fogos que também serviu para comemorar que sua facção criminosa, o Comando Vermelho, retomou o controle da comunidade Gardênia Azul --local que estava sob poder da milícia havia 30 anos.
Há 20 dias a Polícia Civil investiga a expansão do tráfico para a região. Diversas operações têm sido realizadas para tentar impedir o deslocamento de criminosos. Há seguidos tiroteios.
"Houve sete registros de homicídio na área onde estão acontecendo as disputas, porém só quatro são até o presente momento associadas a essa disputa entre organizações criminosas", disse o delegado Marcus Drucker, da Delegacia de Homicídios da Capital.
Além de Doca, o traficante Wilton Quintanilha, o Abelha, integrante da cúpula da facção, são apontados pela Polícia Civil como coordenadores da expansão. Ambos são foragidos e não possuem advogados cadastrados.
A expansão da maior quadrilha do tráfico do Rio contou com a saída de Abelha da prisão, em julho de 2021. Na ocasião, mesmo com um mandado de prisão ativo, ele saiu pela porta da frente do presídio. A Seap (Secretaria de Administração Penitenciária) diz que houve falha de comunicação entre o Judiciário e o complexo penal.
Na saída, Abelha recebeu um aperto de mão do então secretário de Administração Penitenciária, Raphael Montenegro, fato gravado pelas câmeras do presídio.
Montenegro foi preso em agosto do mesmo ano pela Polícia Federal, suspeito de negociar com chefes do Comando Vermelho. Em março de 2022, o TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) trancou a ação penal.
Sobre as conversas gravadas entre Montenegro e os chefes do tráfico, o juiz federal Antônio Ivan Athié afirmou na decisão que "claramente que a intenção dele [Montenegro] era estabelecer um tipo de armistício entre as facções criminosas, de forma não muito correta é claro, mas longe de caracterizar satisfação de interesse ou sentimento pessoal".
Assim que saiu da prisão, Abelha foi ao encontro de Doca, que estava solto após não retornar de uma saída provisória. Investigações da Polícia Civil apontam que desde então ambos, unidos nos Complexos da Penha e Alemão, zona norte do Rio, comandam expansões em diferentes territórios.
Além disso, eles implementaram mudanças na geopolítica do crime: trocaram lideranças e determinaram a volta do assistencialismo aos moradores de favelas, prática que havia sido abandonada pelo tráfico conhecido como ostentação. Traficantes também são obrigados a custear pinturas de grafite que retratem a comunidade local e não a eles mesmo.
Aproveitando o vácuo deixado pelo Estado, as doações de cestas básicas, brinquedos e material escolar passaram a ser frequentes.
Roubos de rua em áreas nobres também foram proibidos, segundo avisos da facção. Em um vídeo feito na semana passada, um grupo de adolescentes aparece apanhando como forma de castigo. Quem narra a violência diz que eles haviam praticado roubo na zona sul do Rio.
De acordo com um agente ouvido pela reportagem, Abelha e Doca determinaram a proibição de roubos de rua e de cargas, principais índices criminais do governo. O objetivo da dupla seria evitar ações policiais nas áreas do tráfico.
Com as medidas assistencialistas, eles ganharam popularidade. A dupla Doca e Abelha é campeã em homenagens em funks, uniformes de futebol comunitários e até em danças no TikTok, com milhares de visualizações.
Nas redes sociais, supostos traficantes afirmam que as invasões ocorrem para livrar os moradores dos pagamentos de taxas de internet, água e luz aos milicianos. Nas mesmas postagens, são compartilhadas fotos de entorpecentes sendo oferecidos nas áreas de milícia.
Foragido do sistema prisional desde 2017, Doca tem 77 anotações criminais e, segundo a polícia, administraria a Vila Cruzeiro para Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP, outro integrante da cúpula. Já a rentabilidade de bocas de fumo na Baixada Fluminense seria dele.
Em razão disso, teria sido autorizado, através de uma ligação, ao assassinato de três meninos do Castellar, em Belford Roxo, em dezembro de 2020. As crianças teriam pegado um passarinho, cujo preço poderia chegar a R$ 5.000 que pertenceria ao tio de um traficante.
Uma testemunha afirmou que ouviu de Wille de Castro, o Stala, um dos executores, dizer que tinha permissão de Doca para o crime. Stala foi morto por Doca após o caso ganhar repercussão nacional. Ele teria argumentado, ainda de acordo com a investigação, que não havia sido informado de que as vítimas eram crianças.
Foragido vai a sítio O possível envolvimento de agentes públicos no auxílio aos traficantes é investigado pelo Ministério Público. Isso porque Doca e Abelha deslocam-se com facilidade pela cidade, nos chamados bondes de traficantes.
A segunda operação mais letal da história do Rio de Janeiro, no Complexo da Penha, deixou 23 mortes, em maio de 2022, e tinha como objetivo a prisão da dupla. No entanto, ambos foram avisados da ação e se refugiaram na Rocinha, zona sul do Rio.
E, para os embates entre as quadrilhas na zona oeste, há deslocamentos de traficantes da Cidade de Deus e da Rocinha, além dos complexos.
A reportagem teve acesso a um relatório de um antigo celular utilizado por Abelha. O criminoso chegou a ir, por diversas vezes, no ano passado, ao Catumbi, à Rocinha e até a um sítio em Barra de Guaratiba. O rastreamento não ocorre em tempo real, o que dificulta a prisão. A polícia também acredita que a dupla tenha passado pelo menos cinco dias no balneário de Búzios.
O tráfico tem se aproveitada da fragmentação da milícia para a o expansionismo. O atual chefe da maior milícia do Estado do Rio de Janeiro, Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, sofre rupturas internas.
O episódio mais recente ocorreu há duas semanas, quando 45 integrantes da milícia pediram para sair da mesma ala que dividiam com apoiadores de Zinho. O mesmo panorama de perda de liderança ocorre na Baixada Fluminense, de acordo com a Polícia Civil.
Um outro relatório de inteligência aponta que o objetivo final do tráfico é conquistar Rio das Pedras, primeira área de milícia do estado. O ponto seria estratégico para ações na Barra da Tijuca, uma das regiões com baixos índices de criminalidade.
Rio das Pedras teve como um dos seus chefes Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Bope (Batalhão de Polícia Especial), morto em fevereiro de 2020.
O Ministério Público concluiu que Adriano, além de chefe do grupo de matadores chamado Escritório do Crime, teve a mãe e a ex-esposa envolvidas no esquema de rachadinhas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, na Alerj.
As duas eram lotadas no gabinete, mas não apareciam para trabalhar. Ao todo, o miliciano e a família transferiram mais de R$ 400 mil para as contas do PM aposentado Fabrício Queiroz, apontado como operador financeiro do esquema. Queiroz trabalhou na Polícia Militar com Adriano.
Na época das investigações, em 2019, a assessoria do senador eleito disse que as contratações foram por indicação de Queiroz e que não pode ser responsabilizado por atos que desconhece. Já Queiroz negou ligação com as milícias.
No sábado, o miliciano Rodrigo Dias, conhecido como Pokémon, morreu durante ação da PM. Ele era apontado como um dos chefes da milícia da Muzema e de Rio das Pedras. "Estamos ainda trabalhando na inteligência para ver quem efetivamente o sucedeu", disse o delegado Mauro César da Silva.
Em nota, o governo do estado afirmou que "no último dia 10 foi inaugurada uma cabine blindada na Muzema, em atendimento a demanda do Conselho Comunitário do Cidade Integrada. Também no período de um ano, o trabalho investigativo da Polícia Civil representou junto à Justiça pelo bloqueio de contas, valores e bens das organizações criminosas da região do Itanhangá cerca de R$ 98 milhões".
Ainda de acordo com o governo, no último ano, 228 criminosos foram presos e dois adolescentes foram apreendidos.
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