PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Quando o tragédia da boate Kiss matou 242 jovens em Santa Maria (RS) e consternou o Brasil, há dez anos, parlamentares, agentes de segurança e empresários foram atrás do regramento para prevenção e combate a incêndios vigentes nas 27 unidades da federação. A maior parte deles, salvo raras atualizações pontuais nos últimos anos, se deparou com legislações das décadas de 1970 e 1980.
Conforme Marcelo Lima, consultor e diretor-geral do IBL (Instituto Sprinkler Brasil), organização dedicada à divulgação de informações relativas ao combate a incêndios, a data não é por acaso.
"Antes do incêndio do Edifício Andraus [em São Paulo, em 1972, com 16 mortes] e depois com o do Joelma [em 1974, com 188 mortes], não havia praticamente nenhuma [legislação sobre incêndios no Brasil]. As leis são dessa época por conta do Joelma, mas alguns estados se desenvolveram bem a partir disso e outros pararam no tempo. É algo natural no mundo inteiro: a evolução das leis nesse setor avançam quando ocorrem uma tragédia", avalia Lima.
Da mesma forma que o Joelma, que ainda deixou mais de 300 feridos, a legislação dos Estados Unidos sobre o assunto é fortemente influenciada pelo incêndio da boate The Station, em Rhode Island, que matou cem jovens em 2003 um incidente bastante semelhante ao de Santa Maria: uma banda acendeu fogos de artifício queimando a espuma de isolamento acústico.
No caso da boate de Santa Maria, a investigação apontou falhas gritantes tanto na prevenção quanto no combate ao incêndio. Além do fogo na espuma tóxica, os extintores de incêndio não funcionaram e os jovens não conseguiram enxergar a única saída da boate, que ainda era dificultada por gradis e por seguranças orientados a barrá-los. Quatro réus respondem por homicídio pelo episódio, mas as condenações foram anuladas em agosto de 2022.
Conforme o engenheiro e ex-deputado estadual Adão Villaverde (PT), autor do que seria apelidada como "Lei Kiss estadual", o Rio Grande do Sul tinha uma das legislações mais rudimentares do Brasil à época sobre o assunto. Era voltada mais à preservação dos prédios do que aos frequentadores e fazia pouca diferenciação entre as edificações amparadas.
"Invertemos essa lógica. A lei passou a ser mais rigorosa conforme a edificação colocasse mais vidas em risco e analisando os prédios nas suas particularidades. Para você ter uma ideia, se o mesmo prédio fabricasse gelo ou fogos de artifício, a legislação da época era a mesma", diz Villaverde.
A Assembleia gaúcha aprovou, em 26 de dezembro de 2013, uma das leis mais rigorosas do país de prevenção a incêndios. Segundo o IBL, mais de dois terços dos estados brasileiros fizeram atualizações nas suas leis na esteira da Kiss. A inspiração foi a lei de São Paulo, que havia sido atualizada em 2011, na gestão Geraldo Alckmin.
Em termos de legislação, houve ainda a aprovação de uma "Lei Kiss nacional" contra incêndios que tramitou por quatro anos, mas cujos vetos a tornaram quase inócua à época da sanção, em 2017. Entre os 12 pontos vetados pelo então presidente Michel Temer estava o mais importante: tornar crime com pena de detenção de até dois anos o descumprimento das determinações legais contra incêndio.
Especialistas, à época, compararam o potencial da Lei Kiss para o combate a incêndios, caso viesse a ser sancionada na íntegra, ao da Lei Seca para o trânsito. Operar em um ambiente irregular contra incêndios seria, aos olhos da lei, um assumir um risco de morte análogo a de um motorista que dirige embriagado.
Nos estados, as leis que surgiram depois da Kiss também sofrem pressão constante por relaxamento. No RS, ela foi modificada em três oportunidades, a última delas em novembro passado, prorrogando para o final de 2023 o prazo para edificações de menor risco se adequarem às normas.
Antes, foram prorrogados os prazos de validade dos alvarás contra incêndios e dispensados para mais de 700 tipos de imóveis menores do que 200 metros quadrados.
"Quando a lei foi aprovada, com a lembrança viva da Kiss, foi por unanimidade. Só depois é que começaram a entrar em ação os interesses envolvidos. É lamentável. Enquanto a cultura contra incêndios não levar a sociedade a se insurgir contra esse tipo de flexibilização, ela vai estar cada vez mais insegura", diz Villaverde.
Lima é mais otimista sobre o legado do incêndio da Kiss. Embora veja pontos a melhorar, como os padrões de qualidade nos equipamentos contra incêndios e nos mecanismos de fiscalização, ele acredita que o trauma e o alerta do episódio em Santa Maria causou uma mudança de mentalidade sobre o tema que persiste.
Um dado apontado pelo especialista é a proliferação de cursos de especialização em segurança contra incêndio, que saltou de 1, em 2009, para 89 registrados junto ao Ministério da Educação atualmente.
"Observo uma evolução na prevenção a incêndios no Brasil não por causa das leis que vieram depois da Kiss, mas sim por causa da própria Kiss. Atendemos empresários dispostos a readequar seus negócios não por causa de uma lei, mas para não correr o risco de se verem responsáveis por uma tragédia semelhante", diz Lima.
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