Elis Trindade: Se você ir em uma loja comprar uma coisa que já está pronta, você vai dançar com a energia do outro. Porque você não vai saber se a energia, naquele momento, é de "estou tendo prazer de fazer esse figurino" ou se a pessoa está confeccionando não gosta do carnaval, porque odeia o barulho, a bagunça e tudo do carnaval. Então, você vai vestir a roupa que foi feita por uma pessoa não gostaria que você fosse ao carnaval. Existem as pessoas que disponibilizam dias e horas de sua vida para confeccionar sua roupa e, aí, é o lado oposto, que você nunca vai saber, porque energia é algo que você pega, você sente. Você nunca vai saber quem fez sua roupa. Então, vá fazer sua própria roupa. Tem várias mães que sentam na porta de casa à tarde e ajudam a bordar sua roupa, pregar ou remendar, ajustar, fazer seu acessório de cabeça.
Tinha uma costureira, no meu bairro, a Nalva, que era maravilhosa. Fazia tudo de todo mundo. Eu nunca a vi sair com a roupa que fez, ela sempre saía simples, com shorts e camisetinha, um brilhinho no rosto, mas gostava de ver todo mundo pronto.
Até hoje, em Nazaré da Mata (PE), todo mundo continua fazendo a confecção de seu acessório. Tem gente que não está mais saindo no carnaval, mas já saiu muitos anos. Principalmente os costeiros dos caboclos de lança, que dão muito trabalho. É fio a fio, agulha a agulha. Então, enquanto você tá vendo aquele desenho se transformar, é muito diferente de você chegar à loja e comprar. Tem uma energia diferente. Você vai ter orgulho de vestir e dizer assim: fui eu que fiz.
Acho que a gente, de alguma forma, tem que tocar neste figurino ou fazer o processo de criação. Eu sou uma pessoa que não sabe usar máquina de costura, mas adoro entregar tecido e olhar o tecido ser transformado. Penso no processo de criação da roupa. Ela precisa girar? Como vai ficar no meu corpo?
Agência Brasil: O que você acha que puxou da família Trindade, que é tão forte aqui também? O que acha que absorveu, em termos de cultura brasileira que é colada nas práticas deles?Elis Trindade: Atravessar a ponte, atravessar o mar foi uma coisa muito incrível. Eu conheci minha sogra, Raquel, em Pernambuco. Ela estava em um hotel, tinha ido plantar um baobá. Era a Bienal do Livro Afrobrasileiro, os 100 anos de Solano Trindade. Eu trabalhava no hotel, recebia as pessoas da área super luxo. Neste período, eu fui proibida de folgar e fiquei com muita raiva no começo. Falei que era a minha folga, mas eles falaram que chegariam umas pessoas que eu precisava receber. Eram da área super luxo, da qual eu era supervisora. Recebi e os conheci lá, conheci a história de Solano Trindade a partir dela [Raquel], que já morava aqui em São Paulo e foi pra lá também, recontar a história. Se você anda pelas ruas de Recife, a estátua de Solano Trindade está lá, mas a maioria das pessoas não sabe quem é ele.
Conversei com minha sogra sobre várias coisas da cultura e ela foi me dando vários toques sobre o que era isso. No momento, não imaginei que viesse para São Paulo, pois era o último lugar que eu queria vir na vida. Aí, o Vitor me pediu em casamento, no primeiro dia em que me viu, e eu aceitei e vim para cá. Antes eu era uma pessoa avessa ao casamento.
Minha ligação com a família Trindade é a de aproveitar mais sobre a cultura brasileira, mas não só como diversão. O Vitor disse que minha voz é o que a cultura popular pede. Então, comecei fazendo vocal na banda dele e depois fiquei ajudando mais na produção. Ele me convidou para dançar. Eu ficava com medo de dançar sozinha, porque sempre dancei no coletivo. Dançava no maracatu e na família, é tudo coletivo. Eu sou um bambuzal, e um bambuzal não fica sozinho. Eu me entendo como um bambu, que também não é uma fortaleza. A dança vem me fortalecendo. Vim para São Paulo no final de 2008 pra 2009, quando aceitei casar com o Vitor.
Agência Brasil: Você pode falar sobre o bloco daqui, que tem similaridades com o maracatu de Nazaré da Mata?
Elis Trindade: Durante o período em que eu estava em Pernambuco, tinha Maria Carolina, que é minha prima, filha da minha tia Ângela. Carol tem uma família de maracatus. Nunca me importei muito, mas sempre vi que era uma coisa maravilhosa, de brilhos, porque gosto de brilho. Eu disse que era neste grupo que queria dançar. Só que minha cidade ficava muito distante. E Ipojuca não tem tradição de maracatu.
Quando vi a família Trindade, aqui em São Paulo, fui e voltei para Nazaré da Mata, onde conheço algumas famílias de maracatu. A gente foi lá pra conversar, porque, na verdade, quando a gente pensa na frase de Solano Trindade, tem que pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte. A gente precisava ter contato com essas pessoas de lá, que foram seus antepassados e tiveram contato com Solano.
Encontramos esse grupo, que já estava fazendo mais de cem anos. Na época, só dançavam os homens. Algumas relações do maracatu tinham conexão com a calunga. E eu disse: Gente, mas eu adoro boneca. Então, maracatu é o meu lugar. Fui fazendo esse quebra-cabeça. Por que uma mulher formada, grande, ficava brincando com as bonecas escondida? Quando eu brincava com as bonecas na rua, as pessoas falavam que eu já era grande para brincar de boneca. Então, eu brincava no meu quarto com as bonecas. Quando encontrei o maracatu com as calungas, fiquei maravilhada. E disse: quero dançar aí para segurar a boneca. Mas não vim a São Paulo para ser dama do paço, vim e fui rainha. Primeiro, fui rainha do Bloco da Cambinda, que é o bloco de carnaval de rua da minha sogra aqui em Embu das Artes, e antes eu dançava no maracatu..
Nunca quis ficar à frente do maracatu, sempre quis ficar lá atrás. Porque rainha é uma só. Eu tinha impressão de que, ao ficar como rainha, eu ia ficar só lá na frente, em uma responsabilidade de mostrar que sou o poder para as pessoas que estão atrás de mim. E só depois fui entender essa relação. No maracatu de Nazaré da Mata, entendi que começava com todos os homens dançando. A estrutura é muito parecida com a gente, porque tem rei, rainha, princesas europeias. E, aí, Mateus e Catirina, que eu não entendia como do maracatu. O moço que atendeu a gente era Catirina, e ela também tinha a função de se montar, e também parecia uma calunga, porque estava com o rosto todo pintado. A função era alimentar o grupo, andar na frente, limpar o lugar. E era uma boneca também.
Foi muito bom passar por essa experiência, que deixou claro o ensinamento que minha sogra já preparava. Dancei coco lá poucas vezes. Aqui dancei o coco, o jongo, que era mais uma pesquisa dos interiores, dos quilombos, o samba-lenço rural, que eu não conhecia, que foi também uma pesquisa da Margarida da Trindade, que era a mãe da minha sogra e que levou pro Rio de Janeiro, quando trabalhava no hospital psiquiátrico. E a família toda faz algo em relação à dança, mas o nosso carro-chefe é esse: o maracatu.
Fui entendendo a força da rainha, lá na frente. Ela não está dançando sozinha, mesmo que pareça. Tem muita gente ao lado dela, muita força, tanto espiritual quanto carnal. É muita força que a gente precisa ter. A gente é que nem palhaço: não pode perder o brilho, o sorriso, porque tem uma comunidade inteira esperando que a gente tenha essa força.
No maracatu, uma coisa que considero muito importante falar é que temos um movimento hoje, de falar da importância das mulheres no toque do maracatu. Às vezes, tem menina que quer muito estar no maracatu, e eu sei que a maioria dos maracatus de São Paulo tem uma cultura do toque que ainda não tem uma corte. Às vezes, por opção, ou porque ainda não chegou no lugar do grupo de dança. Se está na sua comunidade e tem um maracatu, vá para essa família, mesmo se você achar que tem duas mãos esquerdas, como muitas vezes eu pensei. Às vezes, o maracatu não está na força com que você vai tocar o tambor, está na força com que vai tocar o gonguê, o agogô, a caixa, o surdo, o atabaque, está na força do seu querer.
Eu não tocava maracatu, minha sogra não tocava, mas o nosso sotaque dentro da Nação Cambinda foi ela que trouxe de Pernambuco para cá. E ela traz na oralidade. Ela ouviu a mãe dela falar, ela ouviu os maracatus passarem na porta da casa dela, ela ouviu o boi, o pastoril, e ela sabia do som. Colocando o maracatu como o centro do umbigo da mulher, do ventre, dessa primeira boca, que é a mulher nesse lugar do poder do maracatu. A nossa casa foi segurada a partir disso, do entendimento do que é importante você é ouvir.
Se você sabe falar, você vai cantar. Uma hora, você vai encontrar o seu ritmo e, às vezes, o seu ritmo não é o ritmo que está naquele sotaque e naquele outro. Às vezes, você sair do seu bairro e andar léguas, que nem eu, que saí de Pernambuco para vir pra São Paulo, entender a potência do maracatu e voltar pra Pernambuco, ter um outro olhar em relação a isso. Às vezes, a gente não precisa tocar, a gente precisa ouvir e falar menos. Quando a gente fala menos, a gente aprende muito mais. Tem muito mestre querendo falar. E, às vezes, a gente coloca o mestre no lugar do "só é o mais velho". Às vezes, o mestre que está chegando é uma criança e você não entende o que o universo mandou para você.
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