RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Cinco anos após o início da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, o gabinete militar ainda tem entregas a fazer. O Exército mantém quatro homens responsáveis pela burocracia do órgão a fim de finalizar a entrega de um helicóptero para o governo estadual.
A aeronave, cuja entrega está com atraso de dois anos, fez parte do pacote de investimentos de R$ 1,08 bilhão, em valores atualizados, que o governo Michel Temer (MDB) fez à época na segurança pública fluminense por meio da intervenção.
Críticos da intervenção afirmam que ela ocorreu sem planejamento, tendo se convertido no fim de sua atuação apenas num meio de reequipar as forças locais com material voltado ao confronto.
Um dos efeitos da intervenção, apontam especialistas, foi o reforço na lógica de combate ao crime por meio de operações policiais. A polícia fluminense bateu, no ano da intervenção, o recorde no número de mortes provocadas por agentes do estado.
A marca foi superada no ano seguinte, no governo Wilson Witzel, e manteve-se acima dos mil casos sob Cláudio Castro (PL-RJ), cuja gestão na área foi marcada pelas três operações policiais mais letais da história do Rio de Janeiro.
"O fato de ter tanques invadindo favelas ativou o sentimento do punitivismo. Os militares vieram para normalizar a militarização da segurança pública", afirma o cientista político Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
A intervenção também reforçou, para analistas, o uso de militares em funções civis e deu protagonismo político aos generais que a comandaram.
O fenômeno é personificado no então interventor, o general Walter Souza Braga Netto, depois ministro da do governo Jair Bolsonaro (PL) e candidato a vice na chapa derrotada do ex-presidente no ano passado.
A intervenção foi decretada às pressas e sem um plano pronto por Temer em 16 de fevereiro de 2018, logo após o Carnaval, quando cenas de roubos em áreas nobres da cidade foram amplamente divulgadas pela imprensa e aumentaram a percepção de insegurança e vácuo no governo.
O cenário era agravado pela grave crise financeira no estado e ameaça de atraso de salários de servidores, entre os quais policiais.
Apenas quatro meses depois um plano para o estado foi elaborado. Ao fim, a ação comandada pelo Exército acabou com redução em alguns índices criminais, como roubo de carga, mas sem alterar de forma significativa os números de mortes violentas --quatro militares morreram em confrontos.
O período também ficou marcado pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.
A intervenção determinada por Temer ocorreu após sucessivos uso dos militares desde a gestão Lula e Dilma Rousseff (PT) para conter crises de violência urbana. Levantamento do Ministério da Defesa aponta 23 decretos de GLO (garantia da lei e da ordem) por essa razão desde 1992, sendo cinco apenas em 2017, um ano antes da intervenção.
Na GLO, a atuação dos militares era emergencial e em colaboração com as forças locais. Na intervenção federal, a área de segurança pública passou a ser comandada por Braga Netto, sem participação do então governador Luiz Fernando Pezão (MDB).
Desde o fim da intervenção no Rio de Janeiro, nenhuma outra GLO foi decretada no país. Contudo, os militares ganharam papel de destaque em áreas da administração federal no governo Bolsonaro.
A pesquisadora Mariana Janot, mestre em estudos estratégicos pela UFF (Universidade Federal Fluminense), diz que a intervenção marcou uma inflexão no interesse das Forças Armadas em atuar na segurança pública. Para ela, os militares passaram a valorizar mais o envolvimento na administração do setor do que no dia a dia do policiamento.
Ela afirma que isso explica o foco final da intervenção nas aquisições de equipamentos para os órgãos de segurança e na elaboração de documentos com sugestões sobre como gerir o legado da intervenção.
"Uma das coisas mais aventadas durante a intervenção foi uma especialidade imaginada que os militares seriam experientes em logística, o gerencialismo da máquina publica. Braga Netto acumula esse capital político. Em outro local, em Roraima, na Operação Acolhida, o [general Eduardo] Pazzuello também sai com essa imagem", diz Janot.
Pablo Nunes, do CESeC, avalia que o afastamento dos militares do setor se deveu, principalmente, em razão dos governos locais eleitos em 2018, com um discurso linha-dura para o setor. "Para governadores como o Witzel, pedir uma GLO seria uma assinatura de fracasso na principal pauta deles."
Nunes, contudo, concorda que o desgaste do dia a dia da segurança pública contribuiu para afastar os militares. Ele afirma que o foco da intervenção foi se alterando ao longo dos dez meses de trabalho em razão das dificuldades cotidianas da gestão.
"No início, diziam que um dos objetivos seria trabalhar o combate à corrupção policial. Isso perde a centralidade depois da morte da Marielle."
Em seguida, o foco foi transformar a Vila Kennedy, uma favela na zona norte, como principal laboratório da intervenção no combate ao controle de território por facções criminosas. A ação no local foi marcada pela retirada de barricadas pelo Exército e recolocação imediata pelos criminosos, e o "fichamento" indiscriminado de moradores.
"Eles entenderam que as questões envolvendo a criminalidade eram muito mais complexas e se voltaram para a burocracia na aquisição dos instrumentos para as polícias. A experiencia da intervenção mostrou para os militares que é difícil e custoso assumir a segurança", afirma Nunes.
O Exército, então, montou uma espécie de quartel-general para dar vazão no prazo (dezembro de 2018) às licitações com o dinheiro liberado. Foi reservado R$ 1,08 bilhão em investimento, em valor atualizado, o que superou todo o gasto do tipo em segurança pública feito pelo estado de 2008 até aquele ano.
O valor é similar ao investimento feito nos últimos três anos (2020, 2021 e 2022) em segurança pública pela atual gestão fluminense, turbinada no ano passado pelos recursos da concessão do serviço de saneamento básico.
O gabinete da intervenção continua funcionando para finalizar a entrega de um helicóptero para o Corpo de Bombeiros. Duas aeronaves do tipo foram doadas para a Polícia Civil em maio de 2022 e em janeiro deste ano. Também foram liberados computadores, impressoras, TV e extintor de incêndio para os Bombeiros em junho do ano passado.
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