SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Era para ser o Carnaval dos Carnavais depois de dois anos sem a folia em sua plenitude nas ruas. Troca de olhares, roçar de corpos na multidão, mensagens pelo celular, mas a chuva, o frio e a lama definitivamente esfriaram o clima de "pegação". Na ânsia de partilhar a alegria de cada bloco que se aproximava, a festa logo terminava em um selinho sem promessa de retorno.
"Selinho", para refrescar a memória e informar os mais jovens, também conhecido como "bitoca", é um quase beijo ou beijo de passarinho, um toque de lábios momentâneo, apressado, repentino, imortalizado pela apresentadora Hebe Camargo (1929-2012), que, já na sua época, distribuía os seus democraticamente entre homens e mulheres.
"Selinho, sim, mas beijar mesmo, que é bom, beijei bem menos do que queria", conta Lucas Rossi, 29, internacionalista, conhecido entre os amigos como Valesca. Na opinião dele, essa coisa de aplicativo, sem dúvida, tirou um pouco do flerte, do calor humano. "Mas sinto que as pessoas estão abertas no Carnaval para se tocarem, se roçarem e posso dizer que dá, sim, para a gente fechar negócio. Espero."
"Fechar negócio", para quem não entendeu, é ir às vias de fato --ou concretizar o ato sexual--, coisa que não está nos planos da engenheira química Laís Bonacin, 28, nos dias de folia. "Podemos trocar contato, marcar um drinque para gente se conhecer melhor, quem sabe?"
Ela não nega, porém, que trouxe expectativas em relação à volta do Carnaval: "Quero beijar muito na boca. Beijo de verdade, de língua". Lembra que estava morando havia três anos em Boston (EUA), onde sentiu falta do beijo tropical dos brasucas. Nas palavras dela, "não tinha aquela pegada típica, gostosa, do brasileiro".
"Lá, o beijo é mais superficial. Só rola aquela coisa mais quente, de língua mesmo, quando estamos no finalmente", compara. "Estava com saudade do Carnaval e, é claro, de beijar muito. A gente gosta de beijar."
Laís diz que, entre seus amigos e colegas foliões, todo o mundo espera alguma coisa de um dia de festa. "Ao menos beijar na boca, né?"
Era comum ver nos blocos de São Paulo as pessoas se aproximando uma das outras, trocando selinhos e contato das redes sociais para, em seguida, cada um seguir seu rumo atrás de um outro bloco.
A "pegação", mais que nunca, estava no mundo virtual. "Os encontros são marcados via aplicativos. Hoje, eles trocam mensagens e deixam o amor e o sexo para depois. Sabe-se lá para quando e onde", diz a atriz e bailarina Márcia Araújo Dailyn, musa do bloco carnavalesco Acadêmicos do Baixo Augusta.
Primeira bailarina transexual do Theatro Municipal de São Paulo, Márcia conta que ainda prefere um "match", digamos, à moda antiga, ao vivo e em cores. "Gosto de olhar nos olhos, de paquerar, abraçar, tocar a pessoa", afirma como quem fala de um mundo ancestral.
Ao falar da maior festa popular brasileira, recorda-se de outros Carnavais, desde a descoberta do sexo na adolescência, em Jales, no interior paulista. "Carnaval sempre foi uma festa de celebração da música, assim como do corpo", diz. Ela diz não acreditar que a festa esteja menos sexualizada, como poderia parecer. "Na verdade, a folia está mais comportada e respeitosa", sintetiza.
É certo que os blocos, cada vez mais plurais, ocorrem na matinê, agregam famílias, com crianças e "pets", e as pessoas querem, sobretudo, brincar, afirma o arquiteto Rolando Figueiredo, 31. "Os cortejos carnavalescos, muitas vezes, funcionam como uma espécie de esquenta. É à noite que o bicho pega nas festas", conta. "Sou bi, estou aberto, mas não alimento esperanças. Se rolar, tudo bem. Tenho certa dificuldade no contato real", diz.
Seria muita hipocrisia afirmar que essa galera jovem, animada, com os hormônios explodindo, está indo para os bloquinhos com a pura e singela intenção de apenas brincar, na opinião de Letícia Paiva de Assis, 24, estagiária.
"A gente quer, sim, beijar na boca. Não sou bi, mas, neste Carnaval, quero pegar mulher também", afirma. "Não existe essa de segmentar. Os blocos LGBTQIA+ explodiram, mas em todos eles tem muito hétero. Quando você está mais aberto, independentemente de gênero, a vida fica mais fácil. No Carnaval, tudo é permitido, desde que haja respeito."
Para o psicanalista Jorge Forbes, com a horizontalização dos laços sociais, num ambiente de alta exposição, ninguém mais recorre ao Carnaval para exteriorizar os desejos, como acontecia nos Carnavais de antigamente.
"O Carnaval deixou de ser o vale-tudo de outrora. Não precisa transar com quem está lá. Por outro lado, temos o politicamente correto, que responde à moral das necessidades, mas não responde à ética do desejo. O desejo não é nada politicamente correto."
O selinho, segue o psicanalista, é uma espécie de prazer preliminar. Nele, a fantasia é privilegiada. "É um beijo intermediário, quase um purgatório. Você não sabe se vai para o céu ou para o inferno."
Em sua estreia no Carnaval de blocos de São Paulo, o advogado carioca Ramon Costa, 29, estava dividido, de corpo presente aqui, mas com o pensamento lá, na cidade natal. Não escondia a frustração.
"Já tomei muito selinho. Beijo, que é bom, nada. A gente vem para os blocos com uma expectativa de pelo menos beijar na boca."
Sem intenção de gerar intriga ou de provocar um climão de rivalidade entre cariocas e paulistanos, o advogado explica que, no Rio, as coisas acontecem de forma, digamos, mais instantânea. "Lá, as pessoas te olham e já se aproximam. É mais rápido. Aqui, te olham, paqueram, mas a coisa fica por aí."
"Talvez", continua, "essa ausência de entrosamento seja uma questão cultural". Com ares de quem tenta uma explicação teórica, ele diz: "Esse fenômenos dos blocos, historicamente, pode ser considerado ainda novo se comparado com o que acontece no Rio".
É possível que ele esteja mesmo certo. Sabe como é, praia, corpos mais à vontade, calor infernal e, no Carnaval, tudo (ou quase tudo) é permitido.
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