SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A distribuição geográfica planetária da nossa espécie -o único mamífero de grande porte a colonizar todos os continentes, todas as zonas climáticas, todos os ecossistemas terrestres- não foi exatamente fácil de conseguir. Aonde quer que fôssemos, alguma coisa queria nos matar.
E não falo apenas de ursos-das-cavernas ou dentes-de-sabre. Os piores assassinos sempre foram os microscópicos, os que conseguiam devorar nossos ancestrais por dentro, causando todo tipo de enfermidade. Durante a maior parte do tempo, o contra-ataque também veio de dentro do organismo do Homo sapiens: variantes de DNA que surgiam ou já estavam presentes no genoma de alguns sortudos, conferindo-lhes resistência aos inimigos microscópicos.
Aos poucos, os que carregavam essas variantes iam tendo mais descendentes que os demais membros da população, até que sua capacidade de resistência se tornava a norma. Essa história se repetiu muitas vezes mundo afora, e parece ter sido crucial também para que os ancestrais dos indígenas brasileiros conseguissem se estabelecer na Amazônia e praticamente derrotassem o mal de Chagas, doença que ainda hoje é de difícil tratamento.
Pistas sobre esse processo estão numa pesquisa que acaba de sair no periódico especializado Science Advances. Uma equipe capitaneada por Tábita Hünemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP, vasculhou o DNA de 118 indígenas não miscigenados, pertencentes a 19 etnias diferentes da Amazônia. O objetivo era identificar "assinaturas" da seleção natural no genoma -ou seja, variantes de DNA que poderiam ter aumentado as chances de sobrevivência e reprodução das pessoas que as carregam ao longo dos milênios.
Existem vários jeitos engenhosos de detectar a mão invisível da seleção natural agindo sobre o DNA. Um dos mais simples, empregado por Hünemeier e seus colegas, é verificar se determinada variante se tornou muito mais comum em certa população do que nas outras. Usando esse e outros métodos, a equipe identificou uma variante tipicamente amazônica -presente em mais de 80% dos indígenas da região- do gene conhecido como PPP3CA.
Esse gene contém a receita para a produção de uma molécula que está envolvida na comunicação entre as células do sistema de defesa do organismo e no processo por meio do qual o causador da doença de Chagas, o micro-organismo Trypanosoma cruzi, invade células humanas. Mais intrigante ainda, a mesma molécula também está presente nos tecidos cardíacos -e o coração é um dos órgãos que mais são danificados pelo T. cruzi.
Outra peça importante do quebra-cabeças: a incidência da doença é muito baixa entre os indígenas da Amazônia -embora eles vivam na região em que existe a maior variedade de espécies dos insetos que transmitem o mal de Chagas (conhecidos popularmente como "barbeiros", já que tendem a picar o rosto das pessoas).
Tudo indica, portanto, que os ancestrais dos povos nativos de hoje, ao encontrar a doença, acabaram se adaptando a ela graças à presença da variante do gene em sua população. Segundo os cálculos da equipe, isso teria acontecido a partir de 7.500 anos atrás.
A história é intrigante -e também, em certo sentido, é só o começo. Feito um pergaminho antigo, o genoma dos primeiros brasileiros está sendo decifrado aos poucos, e ainda deve iluminar tremendamente o passado profundo do nosso continente.
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