PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Ao fazer um pós-doutorado em farmacologia na Universidade de Montreal, uma cena impressionou a professora e pesquisadora Maria Martha Campos. Em um dia congelante do inverno canadense, deparou-se com um grupo de mulheres passando frio do lado de fora da faculdade. Perguntou do que se tratava.
Eram todas as trabalhadoras de um dos setores da universidade. Haviam descoberto um posto em que um homem estava recebendo remuneração maior do que as colegas mulheres. Até que a distorção fosse corrigida, todas se recusaram a iniciar suas jornadas de trabalho.
"Você vai perguntar quando foi isso. Pasme, foi no início dos anos 2000 e lembro até hoje. Estamos 20 anos atrasados nessa discussão, mas finalmente fazendo algo sobre isso", diz a pesquisadora da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Para detectar e corrigir distorções de gênero no meio acadêmico, as universidades PUCRS e a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) firmaram parceria com a King's College London, da Inglaterra. O projeto Mulheres na Ciência é concentrado sobretudo nas áreas de ciência em que a presença feminina ainda é pequena, como tecnologia, engenharias e matemática.
Em 2021, a universidade inglesa obteve o "Athena Swan Silver", uma espécie de selo de reconhecimento de boas práticas para o avanço da igualdade de gênero. Incluía, entre uma série de medidas da valorização a mulheres, desenvolver projetos multiplicadores dentro e fora do país. Foi aí que entraram as universidades gaúchas.
Em um primeiro momento, a troca de experiências entre acadêmicas inglesas e gaúchas se deu por meio de viagens de integração e de mentoria a jovens pesquisadoras.
Em 2023, o projeto deu um passo além e se estendeu para outras duas universidades do Reino Unido --University College London e Glasgow Caledonian University- e outras duas gaúchas -UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e Universidade Feevale, de Novo Hamburgo (RS).
A partir de abril, passará à fase de mapeamento de dados. Com bolsistas remunerados, as universidades buscarão rastrear onde as mulheres estão presentes e onde fazem falta, sua representatividade em conselhos e diretorias e os obstáculos que fazem com que elas tenham mais dificuldades de ascender no meio acadêmico. Na PUCRS, a seleção para uma bolsista atuar neste levantamento está aberta até 14 de março.
Gabriela Bitencourt Ferreira, 23, é uma espécie de exemplo de pesquisadora que o projeto busca multiplicar. Doutoranda em biologia celular e molecular, ela se destacou com uma pesquisa que usa inteligência artificial para pré-selecionar ou descartar enzimas para tratamentos contra o câncer. O objetivo final é desenvolver um método que poupe tempo e exija menos testes em animais e humanos para se chegar a novos medicamentos.
A relevância da pesquisa fez com que ela saltasse da graduação direto para o doutorado e tivesse o nome citado 189 vezes em artigos científicos em 2021, colocando a gaúcha entre os pesquisadores brasileiros mais influentes da atualidade conforme a revista científica PLOS Biology. Ela tem seus palpites do que impede que haja mais Gabrielas na ciência brasileira.
"Mestrados e doutorados têm muito a ver com conseguir bolsas de pesquisa, e bolsas de pós-graduação não têm licença-maternidade. Então muitas vezes ocorre uma escolha: ou eu constituo família ou foco na carreira acadêmica. Isso para mulheres, para homens é outra história", diz Gabriela.
O segundo obstáculo apontado por Gabriela tem a ver com dinâmicas de poder:
"Como há muitos homens em postos de poder, acabam sendo eles quem indicam os próximos a entrar no poder. Por machismo, homens acabam apostando mais em outros homens."
Os primeiros dados do mapeamento nas universidades estarão em debate em outubro em um simpósio do projeto em Porto Alegre, com a presença de pesquisadoras das universidades britânicas. Conforme Maria Martha, é um passo importante.
"Deixaram de ser normais imagens como a da primeira reunião da CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], em 1951, em que as únicas mulheres presentes eram secretárias. Passamos a questionar porque demorou mais de 100 anos para que a Academia Brasileira de Ciências fosse presidida por uma mulher [a biomédica Helena Nader, desde 2022). O primeiro passo, afinal de contas, é falar no assunto", diz.
Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!