SÃO PAULO, SP - RIO DE JANEIRO. RJ (FOLHAPRESS) - Ao avistar um caveirão subindo as ruas da Fazendinha, favela do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, uma jovem lança rojões para o alto e corre. Se fizesse parte do tráfico, ela seria uma fogueteira, como é conhecido o responsável por avisar aos comparsas que a polícia iniciaria uma operação.

Mas a garota era uma atriz, contratada da Rocywood, produtora de cinema independente, que gravava "Complexo: Guerra dos 300", um filme sobre a história do conjunto de favelas da zona norte carioca.

A Rocywood foi criada há sete anos, na Rocinha, por um grupo de teatro da comunidade que fazia roteiros para séries exibidas online. O desejo era participar do Festival Brasileiro de Nanometragem, que acontece anualmente em Atibaia, no interior de São Paulo.

Por um erro de leitura do edital, o grupo escreveu um roteiro de 45 minutos, quando o festival pedia curtas de até 45 segundos. Às pressas, a Rocywood produziu um nanometragem que criticava o uso de crianças para fins comerciais, batizada de "Anjos Não Falam". O filme venceu a competição, e a obra foi exibida no Festival Internacional de Contis, na França, e no Festival do Porto, em Portugal.

"Foi a mola de impulso para conseguirmos visualizar um horizonte além da Rocinha", diz Fabiana Escobar, uma das criadoras do grupo, que já fez as vezes de produtora, diretora, roteirista, câmera, cozinheira e contrarregra da produtora.

Escobar é conhecida como Bibi Perigosa, a ex-primeira-dama do tráfico da Rocinha que inspirou Glória Perez a criar a personagem protagonista da novela "A Força do Querer", exibida pela TV Globo em 2017. Além dela, a Rocywood conta com outros nove membros fixos, a quem Escobar chama de guardiões da produtora.

O grupo está acostumado a filmar nas favelas cariocas, mas não sem dificuldades. Há cinco anos, a produção do longa-metragem de terror "Vale dos Espíritos" teve de ser interrompida com a eclosão da guerra da Rocinha, como ficou conhecida a disputa entre facções pelo controle do tráfico, e a ocupação da comunidade pelas Forças Armadas.

A chegada da pandemia de Covid atrasou mais uma vez as gravações do filme, sobre um passeio macabro pela Floresta da Tijuca, que agora enfim está em fase de edição.

No set, é necessário negociar tanto com o tráfico quanto com a polícia. As Unidades de Polícia Pacificadora, conhecidas como UPPs, exigem ofício com os locais, horários e descrição dos objetos que serão usados nas filmagens. As mesmas informações também precisam ser enviadas ao tráfico.

No mês passado, quando o caveirão alugado chegou às sete da manhã numa rua de acesso ao Complexo do Alemão, policiais militares pediram para ver a documentação do blindado. Eles riram aos descobrir que se tratava de uma filmagem.

Nem sempre, porém, é possível separar a ficção da realidade. Naquele mesmo dia, alguns moradores procuravam se aproximar das câmeras e do caveirão, mas, receosos, logo se afastavam, na dúvida se aquela operação era mesmo fictícia. Era melhor não arriscar, diziam.

No fim do ano, quando a Rocywood filmava uma cena de sequestro nos arredores do Alemão, um policial militar que dirigia a viatura de um batalhão externo ao morro não viu o carro da UPP que acompanhava as filmagens. Achou que se tratava de um crime e atirou contra os atores. Percebeu o engano segundos depois, com os berros dos produtores.

Outra preocupação de Escobar é fazer com que a Rocywood tenha uma função de transformação social. "Não é só um trabalho. É um investimento. Queremos que quem passe por aqui se qualifique para entrar em qualquer produção de fora da comunidade."

A diretora estima que 90% de seus atores sejam de favelas. Nos testes e nas preparações de elenco, a Rocywood procura parcerias para promover oficinas. Para o filme que está sendo rodado no Alemão, por exemplo, os atores que interpretam policiais tiveram aulas com Jorge Só, diretor de ação e ex-dublê da Globo.

Como os recursos de produção são escassos, a rede de solidariedade típica das comunidades acaba ajudando. "A gente está fazendo o filme com recurso próprio. Vendi meu carro, fizemos vaquinha, dividimos a alimentação e as diárias. O elenco quer muito que o filme aconteça. A união é muito grande", diz Escobar.

Naquele dia, as gravações de "Complexo: Guerra dos 300" correram até o escurecer. Garis pararam a limpeza do morro para ver a filmagem. Alguns moradores queriam foto com o caveirão. Mas a cena mais significativa do dia, para Escobar, aconteceu quando ela entrou no blindado com um grupo de crianças. "Foi a imagem mais simbólica. Eles estavam dentro daquele objeto, mas sem medo algum."

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