BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Ministério dos Povos Indígenas, Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Justiça, incluindo Polícia Federal. Essas três pastas e um dos principais órgãos de combate ao crime no país se posicionam contra a presunção da boa-fé no comércio do ouro de garimpo. A posição está registrada em manifestações enviadas a AGU (Advocacia-Geral da União).
Ainda assim, o órgão defende a permanência da norma em parecer enviado ao STF (Supremo Tribunal Federal). Segundo a AGU, a lei é mal aplicada, e sua revogação pioraria o ambiente regulatório.
A presunção da boa-fé é questionada por duas ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade). Em seu parecer, a AGU afirma que se manifesta como advogada da lei, uma atribuição prevista na Constituição.
No entanto, especialistas ouvidos pela reportagem insistem em afirmar que o órgão escolheu esse posicionamento, pois não é obrigado a atuar como advogado da lei, em especial quando a lei em questão vai contra a União.
A boa-fé está prevista no parágrafo 4º do artigo 39 da lei 12.844 de 2013 e é considerada politicamente constrangedora para o governo Lula. O dispositivo foi inserido pelo deputado Odair Cunha (PT-MG) numa medida provisória sobre seguro agrícola, e a lei, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff.
Tecnicamente, a lei estabelece que o vendedor está dizendo a verdade quando declara a origem do ouro na DTVM (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários). Esse tipo de instituição financeira é autorizada a operar com o metal e, por ser a primeira empresa a adquiri-lo após a extração, é responsável por sua legalização.
Nesses dez anos, especialistas de diferentes áreas concluíram que a boa-fé criou uma brecha legal para "esquentar" ouro de garimpo, especialmente o extraído de terras indígenas e áreas de preservação. Os pesquisadores Leila Pereira e Rafael Pucci, do Insper, por exemplo, identificaram aumento do garimpo ilegal após a promulgação da lei, agregando argumentos acadêmicos pela sua revogação.
Em manifestação enviada à AGU, para ajudá-la a elaborar o parecer para o STF, o Ministério dos Povos Indígenas foi categórico em afirmar que a boa-fé é uma das normas que elevam o risco à vida para as comunidades indígenas.
"O garimpo é o principal mecanismo de extração na Amazônia brasileira, incidindo sobre diversas TIs [Terras Indígenas] -caso das TIs Yanomami (RR e AM), Tenharim Igarapé do Rio Preto (AM), Munduruku (PA), Kayapó (PA), Alto Rio Negro (AM), Raposa Serra do Sol (RR), entre muitas outras", diz o texto.
"A presença de garimpeiros ilegais nesses territórios é uma ameaça permanente ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à proteção territorial das terras indígenas, bem como à sua organização social."
A pasta reforça, ainda, a correlação da lei com a calamidade humanitária dos yanomamis.
O Ministério da Justiça e a Polícia Federal ampliaram a argumentação dentro da mesma linha. No entendimento da Secretaria de Acesso à Justiça, não há dúvida que a boa-fé desobriga as DTVMs de controlar a origem do produto, "pois prevê a presunção da legalidade do ouro e a boa-fé da pessoa adquirente, permitindo que todo o ouro ilegal oriundo da Amazônia seja escoado com a aparência de licitude".
A manifestação também associa a norma à expansão da lavra garimpeira na Amazônia, especialmente em reservas indígenas e unidades de conservação.
"Essa é uma causa importante de desmatamento, degradação ambiental, contaminação e conflitos", diz o texto.
A Secretaria-Geral de Contencioso, por sua vez, incluiu no posicionamento da pasta uma análise da área responsável pela estratégia de combate à corrupção e lavagem de dinheiro, que questiona diretamente o artigo da boa-fé.
"Está no mínimo em total descompasso com a realidade, pois aponta presunção de veracidade justamente num dos elos mais frágeis e vulneráveis da cadeia produtiva do ouro, o elo no qual na prática se tem menos controle e no qual são identificados inúmeros casos de falsidade informacional", diz o texto anexado ao processo.
A manifestação da diretoria-executiva da Polícia Federal vai na mesma linha. Ela solicitou contribuições da Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente, e a conclusão é que "a norma tem operado efeitos negativos no controle da atividade de garimpo", além de "efeitos nefastos ao meio ambiente e às populações das áreas afetadas pela exploração".
Em entrevista à Folha, publicada na sexta (17), o delegado Humberto Freire, que chefia a Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente, reafirmou a posição. "Como é que você vai pressupor a boa-fé muitas vezes de pessoas que já comprovadamente praticaram crime ambiental?", questionou.
O posicionamento da AGU na questão da boa-fé é interpretado entre ambientalistas como parte do pacote de medidas para reforçar a imagem do governo Lula na área ambiental. A AGU já se manifestou em pelo menos dez ações no Supremo na tentativa de suspender o julgamento ou apresentar atenuantes a processos da pauta verde.
A AGU se mostra especialmente focada em rever o chamado estado de coisas inconstitucional, um tipo de técnica decisória que é aplicada quando se pressupõe que há violações graves e sistemáticas de direitos fundamentais, causadas e sustentadas por omissão das políticas públicas.
Dentro dessa perspectiva, chamou a atenção de especialistas os posicionamentos do MMA (Ministério do Meio Ambiente).
Em 1º de fevereiro, o MMA assinou nota técnica tratando do esforço para regularizar os desajustes na área ambiental.
"O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, desde o dia 1º de janeiro de 2023, têm trabalhado de maneira hercúlea, por meio de uma série de ações, aqui demonstradas e detalhadas, no sentido de reconstruir as políticas públicas ambientais brasileiras, revertendo assim, o estado de coisas inconstitucional no meio ambiente, pelo qual o país foi reconhecido", diz o texto da nota.
Em manifestação à AGU, em 26 de fevereiro, já dentro da discussão das ADIs, a pasta reforça que a boa-fé não pode ser usada no Brasil, reconhecendo que prevalece o atual estado de coisas inconstitucional -aquele que a AGU quer que o STF dê por encerrado desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.
À Folha, a AGU reafirmou o posicionamento enviado ao STF.
Destacou que, na sua avaliação, a retirada da lei de 2013, "mediante a declaração de sua inconstitucionalidade, poderia fragilizar ainda mais a sistemática de comercialização de ouro e de sua fiscalização".
Na avaliação da AGU, a lei não exime o comprador de checar a origem do ouro e a regularidade da documentação apresentada pelo vendedor, e também não isenta as autoridades de cobrarem a origem do metal.
"Não está afastada a responsabilização ulterior da pessoa jurídica adquirente e ou do vendedor, caso comprovada a ocorrência de fraude ou ilegalidade na compra", afirma o órgão.
O MME (Ministério de Minas e Energia) foi o único a supor a constitucionalidade da boa-fé. A consultoria jurídica da pasta declarou não ter competência nem aptidão técnica para apontar a inconstitucionalidade. No entanto, disse que acreditava nela, já que a lei foi aprovada pelo Congresso.
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