MACEIÓ, AL (FOLHAPRESS) - Ao ser questionado pela imprensa sobre o que achava de sua música "Oceano" passar a dar nome ao bairro de Cruz das Almas, em Maceió, sua cidade natal, Djavan disse que não gostava da ideia. Espontânea e um tanto cômica, a reação foi mais um capítulo da relação complexa de décadas entre a capital do segundo menor estado do Brasil e um de seus filhos mais ilustres, que tem seu nome fincado na história entre os grandes da MPB.

Na sexta-feira, dia 31, ele cantou para cerca de 30 mil pessoas no Estacionamento de Jaraguá, em um show abarrotado, com ingressos a preço popular e relatos de superlotação, em que resgatou músicas pouco cantadas e se declarou à cidade. Foi a abertura da turnê do álbum "D", que vai rodar Brasil, Estados Unidos e Europa nos próximos meses.

"Soube que empresários querem trocar o nome porque dá azar", diz Djavan. "Acho poético esse nome. Tem ?cruz? e ?alma?. Acho lindo. Disse ao prefeito que Maceió é linda também porque tem um bairro chamado Cruz das Almas."

De certa forma, a proposta de mudança de nome, homenagem um tanto destrambelhada ao músico, carrega alguma semelhança com a trajetória do próprio Djavan. Depois de ficar conhecido localmente tocando Beatles com a banda LSD, no fim dos anos 1960, ele trocou Maceió pelo Rio de Janeiro em 1974, já "condenado a viver do que cantar", como versa em "Alagoas".

Nos anos 1970, quando lançou seus primeiros álbuns, Djavan não era exatamente visto como um gênio em Maceió. "Não queriam muito saber de mim. É um pouco daquele espírito de ?santo de casa não faz milagre?", relembra.

Na verdade, nem no Sudeste sua música era exatamente aplaudida, fosse pelos ritmos com tempos quebrados e confusos, fosse pelo uso pouco convencional das palavras em sua poesia.

"Isso começou a mexer comigo, porque chegava um produtor e falava: ?Djavan, você tem talento, mas sua música é complicada, por que não facilita??", ele diz. "Teve um que me deu até um exemplo. ?Sabe Antônio Carlos e Jocáfi? Fazem um versinho e um refrão e estão milionários?. Eu não entendia o que estavam dizendo."

Não foi a única proposta de mudança que ele ouviu naqueles anos. Manter a estranheza, que tanto lhe confere originalidade quanto é motivo de depreciação por quem não gosta de sua arte, não deixa de ter alguma coerência com a vontade de preservar o nome de Cruz das Almas ?inusual como sua música.

Foi em Angola que ele adquiriu coragem para seguir estranho. Na virada dos anos 1970 para os 1980, Djavan já tinha alguns discos, alguns hits e uma carreira em ascensão, quando participou de uma excursão com grandes nomes da música brasileira, como Martinho da Vila e Dorival Caymmi.

A caravana foi recebida com celebração na Ilha de Mussulo, a 40 minutos de distância de Luanda, capital de Angola. "A gente começou a ouvir aquele canto se avolumando e, quando vimos o cais, estava lotado. Todos com guizos nos braços e um instrumento. As mulheres, invariavelmente, com um filho amarrado nas costas."

Aquele canto, que tanto emocionou, gerou uma identificação em sua maneira de dividir os compassos. "Pensei: 'Sou daqui, vim daqui, minha música é daqui?. Aquilo me salvou. Tirou o peso de fazer música estranha e ser estranho. Não quis saber de mais nada. Minha música está certa. Errado são vocês."

A injeção de autoestima pode ser notada nos álbuns de Djavan do começo da década de 1980, época em que, na visão de Gilberto Gil, a MPB precisava de alguma purpurina. Possivelmente em seu auge criativo, o alagoano introduziu no álbum "Lilás", de 1984, os teclados coloridos e saturados que hoje são obsessão estética de moderninhos dentro e fora do Brasil.

"Esse disco, embora tenha tido êxito, foi bastante polêmico", diz Djavan. "Veio depois do ?Luz?, que era praticamente semi acústico e foi sucesso de público e crítica. Aí vim em ?Lilás? de outro jeito, usando os teclados com aquela densidade e volume. Chocou bastante."

Depois de ter chegado ao Rio, Djavan ficou sete anos sem pisar em Maceió, por falta de dinheiro para as passagens de avião. No ano de "Lilás", retornou à capital alagoana para fazer seu primeiro show para cerca de 50 mil pessoas em um estádio, o Rei Pelé, onde joga um de seus dois times do coração, o CSA.

Aquele foi o pontapé inicial para a retomada de uma relação que era um tanto fria, mas foi selada nos anos 1990, quando ele se tornou quase uma unanimidade no estado. Hoje, a cidade é tanto de Djavan quanto ele é dela, dos cantores nos bares da orla entoando seus sucessos ao saxofonista de rua que não passa um pôr do sol na praia da Ponta Verde sem tocar "Eu te Devoro".

No show de sexta que parou as ruas de Jaraguá, bairro histórico de Maceió, Djavan cantou "Alagoas", que raramente toca, e "Ventos do Norte", uma das poucas músicas que compôs na capital alagoana e chegou a gravar, pela primeira vez em 47 anos. Fez juras de amor à cidade, mas cobrou as autoridades.

Disse que nunca esqueceu Alagoas um só minuto desde que se mudou para o Rio e que, se dependesse dele, o estado "seria o mais feliz do mundo". "Mas eu não posso. Conto com o poder público", afirmou, no show, antes de pedir que todos pudessem comer ao menos três vezes ao dia.

"Para crescer de verdade, tem que começar pela periferia", afirmou o cantor. "Quando chego no Vergel do Lago ou Trapiche, esses bairros, é o mesmo horror de sempre. O estado não chega na periferia que envolve o núcleo da cidade. Saneamento básico, moradia, tudo isso é muito precário."

O show em Jaraguá foi político, com introdução de uma fala gravada de Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas no novo governo de Lula, do PT, do qual Djavan foi eleitor. Ele também dedicou o show às minorias e se posicionou, nas suas palavras, contra o obscurantismo que o país vivia.

Em alguns momentos, uma fatia tímida do público da única capital nordestina que na última eleição deu maioria de votos a Jair Bolsonaro chegou a gritar contra o ex-presidente e a favor do atual. Havia camisetas com o rosto de Marielle Franco na plateia, mas não há dúvidas de que os bolsonaristas também estavam espalhados no estacionamento que foi transformado em palco.

De muitas maneiras, o show quente e aglomerado em Jaraguá, com os ingressos mais baratos à venda por R$ 30, talvez seja a manifestação possível da Maceió que povoa os sonhos de Djavan ?menos desigual, mais inclusiva, sorridente e capaz de celebrar e reconhecer sua própria cultura.

Uma bem diferente daquela que, a poucos quilômetros dali, destruiu casas e afetou cerca de 60 mil moradores dos bairros próximos à lagoa Mundaú, esvaziados por causa da atuação de mineração da empresa Braskem na extração de sal-gema no local, no maior desastre ambiental urbano em curso no país.

Regiões, aliás, muito próximas a onde ficava a capela do Farol, cantada por Djavan em "Alagoas", e em que ele foi criado, o que o fez se emocionar ao falar da destruição não só física, mas psicológica, dos bairros desapropriados.

"Destruíram não só vidas, mas uma história densa que existia naqueles bairros. E ficam hoje mendigando para ressarcir as pessoas. Elas não vão reaver suas histórias. Imagine o que é ter uma casa e ser obrigado a abandoná-la para ela não cair em você. Um lugar onde você mora há 500 anos. A memória da infância, da adolescência, do casamento, do batizado. É um absurdo. As pessoas não podem ficar na rua da amargura."

Foi uma emoção que transpareceu em cima do palco em Jaraguá, do qual Djavan, sempre tímido, saiu distribuindo sorrisos e agradecimentos como um rockstar. O show, feito para ocupar teatros e casas fechadas, é cheio de sucessos, mas tem momentos de introspecção pouco comuns para quem se propõe a entreter as massas.

Neste sentido, Maceió foi uma exceção para Djavan, em uma noite que catalisou sentimentos paradoxais numa intensidade rara. Assim como Cruz das Almas ?um tanto estranho, mas por isso mesmo bonito.

A turnê vai passar pelas principais capitais do Nordeste na próxima semana e chega a São Paulo em 19 de maio, no Espaço Unimed, que também terá uma apresentação no dia 20. Ela segue para o Rio de Janeiro nos dias 27 e 28 do mesmo mês, no Qualistage, e depois vai para Portugal, onde será encerrada.

O repórter viajou a convite da produção do show


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