SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Talvez você não saiba, mas muito provavelmente no seu café da manhã hoje, se consumiu algum produto à base de trigo, como o simples pãozinho francês, ingeriu um produto geneticamente modificado. E, se for próximo à hora do almoço, o famoso "pê-efe" brasileiro, com feijão e arroz, tem grandes chances de também ter espécies com seu DNA alterado.
Modificações genéticas em culturas agrícolas, aprovadas pelos principais órgãos e agências reguladoras do mundo, são feitas há anos. Tais mudanças em geral visam a melhorar algum aspecto desejado ?como, por exemplo, suculência, firmeza e tempo de amadurecimento, no caso de frutas, e resistência a pragas, para os grãos e leguminosas. Nesses casos, as pesquisas de manipulação genética já evoluíram o bastante para tornarem o processo seguro e com consequências (pelo menos, para nós) relativamente tênues e conhecidas.
Mas e quanto às espécies selvagens? É válido modificá-las geneticamente para que consigam sobreviver em um mundo que está mudando constantemente devido às ações humanas?
Há quem defenda que sim e, mais ainda, que talvez esta seja a única forma de sobrevivência de algumas dezenas ou talvez centenas de seres hoje ameaçados de extinção.
Em "Brincando de Deus", seu livro recém-lançado no Brasil pela editora Contexto, a geneticista Beth Shapiro, professora de Biologia Evolutiva na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, afirma que a biotecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar na preservação dos ecossistemas.
"Se temos a capacidade de modificar o genoma e criar espécies que vão ser mais bem adaptadas, mais saudáveis e consigam viver melhor nos ambientes modificados, não vejo por que não tentar isso. Usar essas tecnologias para ajudar as espécies pode ser a única forma de salvá-las", disse Shapiro em entrevista à reportagem.
Os cientistas reconhecem que a taxa de extinção das espécies hoje é cerca de 20 vezes maior do que a encontrada no registro fóssil. Isso significa que estamos levando diversas espécies à extinção em um ritmo muito mais acelerado do que a própria seleção natural.
É por isso que esforços para reverter o processo de extinção e trazer de volta à vida algumas dessas espécies, como o mamute e o dodô, que foram extintos com provável ação humana, pipocam por aí.
A Colossal Biosciences, que lidera esse projeto, afirma que o desejo de "desextinguir" as espécies é para repovoar os habitats naturais e conter as mudanças climáticas. Shapiro atua como consultora da empresa para o processo de recriação do dodô, ave similar a um pombo e que foi extinta no século 17.
Muitos especialistas, porém, são contrários, alegando que é um esforço consideravelmente alto e que ainda vai demorar muitos anos para conseguir criar os animais em cativeiro antes de liberá-los na natureza.
A pesquisadora concorda que estamos ainda muito longe de ter estepes da Sibéria repovoados com mamutes, mas também rebate as críticas sobre o uso de biotecnologia para preservação dos organismos.
"Nós já fazemos a manipulação de espécies por meio da seleção artificial para raças [de cachorro], temos santuários de vida selvagem onde escolhemos quais espécies podem viver ali. Afirmar que não podemos nos aventurar no mundo da biotecnologia [para conservação] e que devemos, em vez disso, mudar nosso comportamento em relação ao mundo e esperar que as coisas melhorem, talvez seja tarde demais."
O uso do dinheiro investido nos programas de manipulação genética de animais supera em muito os esforços globais para a conservação tradicional, como a criação de parques ou reservas e tentativas de recuperar populações de organismos ameaçados. E há também quem critique do ponto de vista ético a manipulação de espécies selvagens sem um fim específico.
"Há riscos envolvidos, mas eles são bem menores do que o conhecimento que vamos ter ao explorar essas tecnologias e como elas podem ser usadas para, por exemplo, investir na conservação de aves que em alguns anos podem estar criticamente ameaçadas", disse.
A geneticista afirma acreditar que o investimento feito em biotecnologia não é "dinheiro tirado da conservação tradicional". "Não são pessoas que antes estavam envolvidas em projetos de conservação e agora estão investindo em tecnologia. São duas linhas que têm objetivos diferentes", diz.
Se em 20 anos teremos ursos polares com genes modificados para resistir ao aquecimento global no Ártico ou áreas de floresta de castanheiros nos Estados Unidos que sejam resilientes a longos períodos de estiagem não sabemos.
O que sabemos, no entanto, é que os esforços para reduzir o aumento da temperatura global para no máximo 2°C até o fim do século já são bem conhecidos e envolvem ações mais diretas, como a redução da emissão de gases estufa e frear o desmatamento.
BRINCADO DE DEUS: COMO A HUMANIDADE VEM ALTERANDO A NATUREZA HÁ 50 MIL ANOS
Preço R$ 79,90 (352 págs.)
Autor Beth Shapiro
Editora Contexto
Tradução Diogo Chiuso
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