SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sair de casa no largo do Paiçandu e caminhar até um posto de saúde na praça do Patriarca, no centro de São Paulo, passou a fazer parte do dia a dia da autônoma Francisca Meira Cilda, 56, nos últimos meses. Lá, faz a mesma pergunta: se foi marcada consulta para o marido com um oncologista. "A resposta é sempre igual, não há previsão", diz.

Raymundo Thury de Castro, 70, o marido dela, foi diagnosticado em março com um tumor no rosto, e o clínico geral que o atendeu na UBS (Unidade Básica de Saúde) República recomendou direcionamento do caso com urgência a um médico oncologista.

A rotina desesperadora do idoso, a de esperar sem perspectiva por consulta com especialista em câncer, como define a família, é mais comum do que se imagina em São Paulo, cidade com saldo de cerca de R$ 35 bilhões em caixa nos cofres públicos e orçamento de R$ 16,4 bilhões para a Secretaria Municipal da Saúde neste ano.

"Nestas horas, a gente só pensa em coisa ruim", diz a autônoma, que buscou atendimento na UBS que fica praticamente em frente ao gabinete do prefeito Ricardo Nunes (MDB).

Raymundo Thury de Castro, 70, que teve diagnosticado câncer no lado direito do rosto, próximo à mandíbula; ele espera há meses para ser atendido com oncologista na rede municipal de saúde da cidade de São Paulo Danilo Verpa/Folhapress 0 **** A situação é a mesma em outras regiões da cidade. Apenas no Hospital Dia de São Miguel Paulista, zona leste, há mais de 60 pessoas na fila para passar com oncologista especializado em câncer de cabeça e pescoço, segundo integrantes do conselho gestor da unidade.

Em nota, a pasta municipal da Saúde diz que relatório de 29 de maio apontou número menor e que quatro pacientes aguardavam por consulta com especialista em oncologia cabeça-pescoço na unidade.

O atraso contraria lei de 2012. Ela estabelece que o primeiro tratamento oncológico no SUS deve começar no prazo máximo de 60 dias a partir da assinatura do laudo patológico ou em prazo menor, conforme necessidade.

Há pouco mais de um ano, em maio de 2022, durante a inauguração de um centro de alta tecnologia em diagnóstico e intervenção oncológica no Hospital Municipal Dr. Gilson de Cássia Marques de Carvalho, na Vila Santa Catarina, zona sul, a prefeitura disse que a cidade poderia cumprir a legislação federal de iniciar tratamento de câncer em até 60 dias, com a abertura daquela moderna estrutura.

"Esse era o sonho do Bruno Covas, de dar à população que tivesse essa doença o mesmo tratamento que ele teve [em hospital particular]", afirmou Edson Aparecido, ex-secretário municipal da Saúde e atual secretário de Governo da prefeitura, durante a inauguração do local que leva o nome do ex-prefeito citado por ele, morto de câncer em 2021.

Questionada sobre o tamanho da fila de pacientes para início de tratamento contra câncer e porque a rede municipal não cumpria o prazo de 60 dias, a gestão Nunes não respondeu, mas diz em trecho de nota que a oferta de vagas é dinâmica, com entradas e saídas diárias no Siga (Sistema Integrado de Gestão de Assistência à Saúde).

Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito de Saúde da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo, afirma que um dos caminhos para tentar buscar atendimento médico é acionar a Justiça --procurar a Defensoria Pública é uma opção para quem não consegue pagar a ajuda jurídica, orienta ela--, apesar de não haver garantia.

"Porém, não adianta ele [juiz] dar uma ordem judicial para se iniciar o atendimento se não há disponibilidade", afirma. "Mas é válido, assim como procurar a Secretaria de Saúde do município e bater o pé."

Segundo do Tribunal de Justiça de São Paulo, de janeiro a abril foram distribuídos 142 processos com pedidos de tratamento médico pela rede pública na cidade de São Paulo (não apenas contra câncer). O número é semelhante ao do mesmo período do ano passado (143).

A advogada lembra que uma mudança na lei, em 2019, reduziu para 30 dias a realização de exames quando há hipótese de diagnóstico de câncer. "Essas pessoas têm direitos."

Para a médica Maria Ignez Braghiroli, coordenadora do Comitê de Tumores Gastrointestinais Alto da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), a dificuldade de se chegar ao diagnóstico pode ser ainda superior.

"De fato há vários percalços, mas acho que o maior problema nem é marcar a consulta. Até fazer o diagnóstico é uma peregrinação", afirma ela, que atende pelo SUS desde 2008.

Um dia depois de a reportagem ter questionado sobre a falta de atendimento ao idoso Castro, a família recebeu a notícia de que finalmente ele será atendido, no dia 4 de julho, ou seja, cerca de três meses após o diagnóstico.

O mesmo aconteceu com Luiz Ademar Campos, 76, que desde fevereiro busca atendimento oncológico após ser descoberto um câncer de próstata, assim como em todos os casos de pacientes questionados pela Folha, e sempre com agendamento para mais de 60 dias após a detecção da doença.

O também aposentado Maurício Artuzo, 69, da zona leste, recebeu diagnóstico de câncer de próstata em 24 de março --apesar de os primeiros sinais terem sido identificados em novembro de 2022. O encaminhamento para um oncologista só foi confirmado nesta quinta (1º) --a consulta será em 7 de julho.

Vinte dias antes, a Secretaria Municipal da Saúde disse que a consulta seria agendada pela regulação central segundo ordem de prioridade clínica e cronológica, de acordo com vagas ofertadas por Serviços de Oncologia da Secretaria de Estado da Saúde.

Também em nota, a secretaria estadual afirmou que não havia fila para regulação oncológica no estado.

Cansado de esperar pelo telefonema com a sonhada data da consulta, o chef de cozinha Cleiton de Abreu Chiari, 48, conseguiu por meios próprios atendimento ao pai, Roberto Chiari, 76, no Hospital de Câncer de Barretos, a cerca de 423 km de São Paulo, mas com a esperança de que possa ser tratado mais perto de casa, na zona leste --com diagnóstico de câncer de próstata, após várias consultas, em março foi pedida urgência para ele passar com oncologista. Nesta quinta (1º), a secretaria disse que o idoso será atendido em 5 de julho.

De acordo com o médico Fernando Maluf, oncologista e fundador do Instituto Vencer o Câncer, atrasos no diagnóstico e no tratamento pioram o prognóstico, independentemente do tumor.

Um estudo de 2017, do Observatório de Oncologia, mostrou que no Brasil, em geral, 20,4% dos casos demoraram, em média, mais de 60 dias para iniciar o tratamento após o diagnóstico.

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a situação só vai mudar com melhoria de gestão, informatização de todo o sistema de saúde para diminuir desperdício, orçamento para contratar mais profissionais, equipamentos e capacidade para procedimentos dos hospitais, entre outros.

"O pior é a pessoa saber que tem câncer, mas que não se está fazendo nada", diz o médico Maluf.

O QUE DIZ A LEI 12.732, DE 2012

- O paciente com neoplasia maligna tem direito de se submeter ao primeiro tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS), no prazo de até 60 (sessenta) dias contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso registrada em prontuário único

- Para efeito do cumprimento do prazo estipulado no caput, considerar-se-á efetivamente iniciado o primeiro tratamento da neoplasia maligna, com a realização de terapia cirúrgica ou com o início de radioterapia ou de quimioterapia, conforme a necessidade terapêutica do caso

- Os pacientes acometidos por manifestações dolorosas consequentes de neoplasia maligna terão tratamento privilegiado e gratuito, quanto ao acesso às prescrições e dispensação de analgésicos opiáceos ou correlatos

- Nos casos em que a principal hipótese diagnóstica seja a de neoplasia maligna, os exames necessários à elucidação devem ser realizados no prazo máximo de 30 (trinta) dias, mediante solicitação fundamentada do médico responsável

- O descumprimento desta Lei sujeitará os gestores direta e indiretamente responsáveis às penalidades administrativas COMO BUSCAR AJUDA

Pacientes com diagnóstico de câncer com dificuldade de atendimento médico podem recorrer à Justiça para tentar fazer cumprir a lei dos 60 dias

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