SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O Hospital das Clínicas de São Paulo acaba de inaugurar o primeiro ambulatório do país destinado ao tratamento de dependentes de opioides, medicamentos com efeitos analgésicos e sedativos que, quando usados indevidamente, podem levar ao vício.

A proposta é que o local receba tanto pacientes que se tornaram dependentes após tratamentos prescritos por médicos quanto aqueles fazem uso recreativo dessas substâncias.

Instalado no Instituto Perdizes do HC, na zona oeste de São Paulo, o serviço reúne especialistas em psiquiatria, em psicologia e no manejo da dor. O local não tem pronto-socorro.

O acesso de pacientes é por meio do sistema de regulação do estado de São Paulo (Siresp), após encaminhamentos de UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e de Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Ainda há vagas para os meses de junho e julho.

A iniciativa ocorre em um momento em que o país registra aumento na venda sob prescrição desses medicamentos. Em seis anos, houve uma alta de 465%, segundo dados da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

A codeína, considerada um opioide leve e geralmente indicado para dores moderadas, responde por mais de 90% das prescrições. Oxicodona e metadona vêm em seguida.

Segundo especialistas, tem havido uma prescrição indiscriminada de opioides por médicos que não têm conhecimento sobre o manejo adequado da dor. Ao mesmo tempo, o país ainda convive com doentes graves, como os oncológicos, sem acesso aos opiáceos.

Há também o uso ilegal da substância. Em 2019, uma pesquisa sobre drogas da Fiocruz mostrou que 4,4 milhões de brasileiros já tinham usado algum opiáceo sem prescrição médica -ou 2,9% da população.

Somam-se ao cenário as recentes apreensões de lotes irregulares de fentanil, um opioide 50 vezes mais potente que a heroína e cem vezes mais que a morfina. Nos Estados Unidos, só em 2021, foram mais de 100 mil mortes por overdose associadas ao fentanil e congêneres.

Segundo o psiquiatra André Malbergier, coordenador do ambulatório de opioide, além do aumento do uso prescrito da codeína e da oxicodona para o controle da dor, há um crescimento do consumo recreativo desses medicamentos, principalmente entre os adolescentes.

Ele cita uma mistura chamada "lean", que reúne codeína, prometazina [antialérgico que aumenta o efeito da sedação] e alguma bebida, que pode ser alcoólica ou refrigerante. "Eles ficam doidões. E são todas drogas lícitas, o que dá uma certa segurança ao garoto", diz o médico.

Malbergier vê com preocupação as apreensões de fentanil no Brasil. "A substância vem sendo misturada a outras drogas, como a cocaína. A gente ainda não está treinado para tratar desses casos."

A oxicodona também tem aumentado entre os usuários recreativos, mas em ritmo menor em razão do preço dos medicamento -uma caixinha com 14 comprimidos custa entre R$ 150 e R$ 190.

Até o momento, o ambulatório só tem tratado de pacientes que iniciaram o uso abusivo de opioides após tratamentos de saúde.

Segundo Malbergier, a ideia é que o modelo multidisciplinar do serviço seja replicado em outros lugares do país e que também sirva de referência para os médicos na hora da prescrever opioides.

"Precisa levar em conta se é um paciente jovem, se tem histórico pessoal ou familiar de uso abusivo de substâncias, se tem fatores psiquiátricos. Em todos esses casos, o risco de dependência é maior. Os médicos ainda não conseguem usar esses critérios na hora de prescrever."

O psiquiatra lembra que as consequências de uma prescrição inadequada de opioides podem ser muito graves. "Além de não eliminar a dor, a pessoa vai ter uma dependência de opioide. As limitações para uma vida saudável vão aumentar."

No Brasil, não há números sobre o quanto os opioides representam dos casos de overdose de drogas, mas especialistas em dor relatam que já tiveram pacientes que morreram nessas situações.

Um caso recente é de um jovem de 20 anos, de São Paulo, que tinha transtorno de ansiedade. Além de ansiolíticos, ele também recebeu prescrição de opioide e, como o tempo, tornou-se dependente da substância.

"O opioide atua na área de recompensa do cérebro. Melhora a dor e o padrão de estresse do paciente. Mas é um ledo engano de benefício. Os colegas que não têm formação adequada acham que estão beneficiando o paciente porque dá aquela calmaria, mas é um erro", diz a médica anestesiologista Claudia Palmeira, que integra a equipe do ambulatório de opioide do HC.

Palmeira também atua no ambulatório de dor não oncológica do HC e diz que é frequente atender ali pacientes que se tornaram dependentes em opioides porque não foram submetidos a critérios de avaliação adequados quando receberam a primeira prescrição.

Segundo a médica, mesmo que o paciente não tenha fatores preditivos de abuso, em 30 dias de uso de oxicodona, por exemplo, ele já pode desenvolver dependência grave e não vai conseguir ficar sem a substância.

"O que acontece com muitos pacientes? Eles vão para o pronto-socorro, simulando uma crise de dor [para conseguir mais opioide]. Seja rico ou seja pobre. Isso acontece em hospitais públicos e privados", afirma.

Para ela, é muito difícil para o médico do pronto-socorro, que costuma não ter formação em dor, avaliar o risco de dependência. "O paciente está ali gritando, dizendo que está com dor, há pressão familiar, ele prescreve e pronto."

Palmeira afirma que há várias situações em que os opioides não são indicados para o controle da dor, por exemplo, casos de dor lombar e de fibromialgia: "Nós temos pacientes fibromiálgicas dependentes de opioides porque o clínico, o ortopedista prescreveram. Esse é o grande problema que a gente tem e é parecido com o que aconteceu nos EUA."

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), o tratamento da dor deve respeitar um escalonamento (degraus da escada analgésica), que inclui analgésicos, anti-inflamatórios, fármacos adjuvantes e opioides (fracos e fortes).

Outro grupo que preocupa são os profissionais de saúde dependentes de opioides. É um caso de uma técnica de enfermagem de 40 anos, que está internada no instituto para se tratar do vício.

Ela já tinha experimentado psicoestimulantes, como a cocaína, e no hospital onde trabalha teve acesso à morfina. Já dependente, começou a simular episódios de dor para conseguir mais morfina. "Junta o fato de terem uma vida muito estressante com o fácil acesso a esses medicamentos", diz a médica.

O tratamento para cuidar dessa dependência, envolve internação, com substituição da substância e diminuição gradativa da quantidade prescrita. "Eles passam muito mal, têm todos aqueles sintomas de abstinência, é uma dependência muito difícil de ser tratada."

A síndrome da abstinência se manifesta inicialmente com ansiedade e fissura pela droga, seguidos de tremores, enjoos, vômitos, diarreias, entre outros.

No momento, o ambulatório de opioides tem um projeto de pesquisa em curso e está recrutando voluntários que apresentam quadro de dependência por oxicodona, codeína ou demais substâncias à base ópio. A triagem acontece por meio do email pesquisa.iper@hc.fm.usp.br.


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