SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A trajetória do físico nova-iorquino Robert Oppenheimer (1904-1967) e a história do desenvolvimento das primeiras bombas atômicas é o exemplo mais emblemático da dificuldade de prever os efeitos de uma nova tecnologia, como foi mostrado no filme "Oppenheimer", do diretor Christopher Nolan.
A equipe liderada por Oppenheimer encarava seu trabalho como algo que poderia derrotar de uma vez por todas a Alemanha nazista e talvez até acabar com as guerras para sempre, sem imaginar que a primeira explosão na cidade japonesa de Hiroshima seria só o início de uma corrida armamentista capaz de levar a civilização humana à extinção.
O comportamento das duas superpotências do século 20 (os EUA e a União Soviética) também deixou clara a dificuldade de "colocar o gênio de volta na lâmpada" quando avanços científicos e tecnológicos deixam de ser exclusividade de um único laboratório ou país. Embora o uso militar das bombas não tenha voltado a ocorrer, o desenvolvimento e a produção desses armamentos continuaram avançando. E não há sinal de que o abandono completo das armas nucleares possa acontecer tão cedo.
O processo que deflagrou o Projeto Manhattan, bilionário esforço chefiado por Oppenheimer que culminaria com o bombardeio atômico do Japão em 1945, mostra como ciência e política, nesse campo de estudos, caminharam juntas o tempo todo.
Os primeiros indícios experimentais claros de que seria possível fragmentar o núcleo dos átomos e produzir uma reação em cadeia capaz de multiplicar o fenômeno vieram a público entre 1938 e 1939. Esse processo, a chamada fissão nuclear, está na base de praticamente todos os armamentos do tipo até hoje. O detalhe é que as descobertas cruciais sobre o mecanismo aconteceram na Alemanha, pouco antes que o regime de Adolf Hitler desencadeasse a Segunda Guerra Mundial.
Nos anos anteriores à guerra, o regime nazista já estava marginalizando, perseguindo e prendendo cientistas de origem judaica ou pertencentes à esquerda do espectro político. Esses pesquisadores, muitos dos quais se refugiaram nos EUA ou no Reino Unido, passaram a ser incorporados ao esforço de guerra dos inimigos da Alemanha hitlerista. Cientes de que os nazistas poderiam usar a fissão nuclear para produzir bombas poderosíssimas, eles passaram a defender que os americanos saíssem na frente dessa corrida.
Esse era o tema de uma carta assinada pelo maior cientista da época, o judeu alemão Albert Einstein, e escrita pelo judeu húngaro Leo Szilard, em agosto de 1939. Os dois físicos endereçaram a mensagem ao presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, alertando-o sobre a possibilidade da construção desse tipo de arma, aconselhando o governo a investir nas pesquisas sobre o tema e advertindo Roosevelt de que a Alemanha poderia enveredar por esse caminho também.
Roosevelt determinou o início de estudos relativamente modestos sobre o tema, mas a iniciativa demorou cerca de dois anos para decolar de vez. Isso porque os EUA só entrariam oficialmente na Segunda Guerra Mundial ao serem atacados pelo Japão (aliado da Alemanha) no fim de 1941. Logo depois, Hitler declarou guerra aos americanos.
Diante disso, e com o apoio de seus aliados britânicos e de muitos cientistas refugiados, os EUA acabariam investindo o equivalente a US$ 25 bilhões atuais (R$ 120 bilhões) no Projeto Manhattan. Oppenheimer, então professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, foi escolhido para liderar o braço científico do projeto. Ele não era considerado um dos maiores gênios da física de sua geração ?nunca ganharia o Prêmio Nobel, por exemplo?, mas era o de interesses mais amplos e maior capacidade interdisciplinar, além de ser muito respeitado por seus pares. Isso permitiu que ele dominasse todos os aspectos da construção da bomba, da física teórica ao design de cada artefato.
Além disso, tanto Oppenheimer quanto muitos de seus colaboradores eram ligados à esquerda e viam a bomba como a grande oportunidade de derrotar Hitler de uma vez por todas. "Não queríamos perder um único dia, uma única semana. E não havia dúvida de que perder um mês seria uma calamidade", resumiu Isidor Rabi, que venceria o Nobel de física em 1944.
Além do conhecimento enciclopédico, o carisma de Oppenheimer teria sido um ingrediente-chave para o sucesso. "Los Alamos [laboratório do projeto criado no deserto] poderia ter dado certo sem ele, mas certamente só com muito mais esforço, menos entusiasmo e menos rapidez. Ele era um líder", resumiu o físico Hans Bethe, outro membro da equipe que acabaria ganhando o Nobel.
Oppie, como era conhecido o coordenador do projeto, argumentava que o efeito destruidor da bomba causaria tamanho espanto no público que as guerras passariam a ser impensáveis depois de sua detonação ?ideia que já tinha sido proposta pelo escritor de ficção científica H.G. Wells e pelo inventor Thomas Edison quando a arma ainda era só uma possibilidade teórica.
Mesmo com a derrota da Alemanha antes que os dispositivos ficassem prontos, ele disse que fazia sentido usar as armas para forçar o Japão ?que ainda enfrentava os americanos? a se render de forma incondicional. Ajudou inclusive a planejar o posicionamento do avião que despejaria a bomba em Hiroshima para que o dano causado fosse o máximo possível.
Depois do ataque, porém, a posição de Oppenheimer mudou consideravelmente ?embora ainda fosse ambivalente. De um lado, num encontro com o presidente Harry Truman (que sucedeu Roosevelt após a morte deste), o físico declarou: "Sinto que tenho sangue nas mãos" (depois da conversa, Truman teria proibido que Oppenheimer aparecesse de novo na Casa Branca, chamando-o de "bebê chorão").
Após a guerra, Oppie continuou fazendo parte de uma série de órgãos consultivos do governo americano. Seu objetivo inicial era criar um tratado internacional que barrasse totalmente a construção de novas armas atômicas, sem sucesso. Ele também foi derrotado por um antigo subordinado, Edward Teller, que convenceu o governo dos EUA a financiar a criação das primeiras bombas de hidrogênio. Elas funcionavam com base na fusão nuclear (essencialmente a mesma fonte de energia do Sol) e tinham poder destrutivo milhares de vezes maior que as de Hiroshima.
Com alguns anos de atraso e com ajuda de espiões que tinham participado do Projeto Manhattan, a União Soviética desenvolveu suas próprias bombas, iniciando uma corrida de acumulação de armamentos atômicos. "Podemos ser comparados a dois escorpiões numa garrafa, cada um capaz de matar o outro, mas com o risco de sacrificar a própria vida", escreveu Oppenheimer sobre esse processo em 1953. Ainda assim, ele achava que bombas nucleares táticas ?ou seja, de tamanho relativamente modesto? ainda poderiam ter alguma utilidade militar.
A associação com a esquerda ?envolvendo, por exemplo, contribuições para o Partido Comunista americano? acabaria fazendo com que Oppenheimer perdesse o acesso que tinha aos organismos da área de segurança nacional em Washington. Ele morreu em 1967, sem presenciar descobertas que acabariam por enterrar de vez, ao menos na cabeça da maior parte do público, qualquer legitimidade de um conflito nuclear.
Esse processo se consolidou no começo dos anos 1980, em parte graças às descobertas de um ex-participante do Projeto Manhattan. Nessa época, Luis Alvarez (também nobelista) propôs que o choque de um meteorito na Terra há 66 milhões de anos teria exterminado os dinossauros ao causar uma escuridão global (graças aos detritos do impacto em suspensão na atmosfera).
Inspirando-se em parte nesses dados, uma equipe da qual fazia parte o astrofísico e divulgador científico Carl Sagan formulou a ideia de "inverno nuclear", que seria o resultado inevitável de uma guerra desse tipo entre EUA e União Soviética. O inverno nuclear seria muito semelhante ao fim dos dinossauros. A tese se popularizou e estimulou os esforços de desarmamento nos quais americanos e soviéticos se comprometeram a reduzir significativamente seus arsenais.
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