SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Durante um encontro com prefeitos, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), mostrou um vídeo enviado pelo padre Júlio Lancellotti que exibia funcionários da Prefeitura de São Paulo recolhendo barracas de sem-teto erguidas debaixo do Minhocão, no centro da capital paulista.

A sequência foi usada para embasar uma decisão que determinou a criação de uma política nacional sobre moradores de rua.

O gesto do ministro, que determinou a proibição a estados a municípios de retirar pertences de quem vive na sua, escalou para a esfera federal o embate cotidiano entre a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o religioso, coordenador da pastoral do Povo de Rua.

Para reagir com mais celeridade aos vídeos postados por Lancellotti em suas redes sociais quase diariamente, a administração municipal tem escalado servidores para testar de maneira anônima os serviços voltados à população de rua na capital. As visitas a abrigos são detalhadas em relatórios.

Um desses relatos foi usado para confrontar denúncia do padre em relação à qualidade da comida servida em um dos abrigos. Diante da constatação do problema, a gestão do endereço já havia sido trocada antes de a publicação vir a tona.

Com o aumento da população de rua na capital paulista, o tema é tratado como uma das prioridades pelo prefeito, pré-candidato à reeleição no pleito a ser disputado em outubro ano que vem. Com frequência, Nunes afirma que o padre é alinhado com o PSOL, partido de seu principal adversário nas próximas eleições, Guilherme Boulos, o que motivariam as críticas constantes à sua administração.

O padre nega qualquer motivação politica em suas ações e diz que mantém contato direto com prefeitos para tratar de questões relacionadas à falta de moradia em São Paulo desde a gestão de Jânio Quadros, entre 1986 a 1988. "Me dão um poder que eu não tenho", diz Lancellotti. "Cobrei muito também do Fernando Haddad [PT]", continua, ao citar o último prefeito de um partido de esquerda eleito em São Paulo.

Nesta quarta (9), o padre acionou a prefeitura para denunciar a retirada de pertences de moradores de rua na região da Luz. Nas trocas de mensagens, ele disse que a gestão municipal debocha da decisão do ministro do STF.

Em nota, a secretaria de Assistência Social afirmou que criou um grupo de acompanhamento e fiscalização há cerca de três meses "para que as melhorias necessárias nos serviços de acolhimento sejam implementadas". "Os relatórios são produzidos com o objetivo de aperfeiçoar o serviço de acolhimento na rede", completou a pasta.

Sobre a determinação de Moraes, a prefeitura informou que a decisão "fortalece o trabalho realizado pela administração municipal". As ações de zeladoria são informadas em site oficial diariamente, segundo a gestão municipal.

A decisão de Moraes em relação aos sem-teto acolheu pedido da federação Rede Sustentabilidade e PSOL, além do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, oficializado em 2022 diante da escalada da crise social nas grandes cidades. Segundo a decisão, o governo federal tem 120 dias para apresentar um programa nacional para a população de rua em parceria com os governos estaduais.

Em tom de campanha, Nunes rebateu as críticas do padre, embora sem citá-lo, durante cerimônia de assinatura de um convênio internacional para discutir o tema com prefeitos de cidades de Inglaterra, Finlândia, Canadá, Chile e EUA, na última segunda-feira (7). "Tem algo que a gente sabe que não irá vencer, o discurso de algumas pessoas que colocam esse tema no âmbito da política partidária; a gente trata isso no âmbito da política pública", disse.

"Vamos continuar com políticas públicas de acolhimento e não de incentivo às pessoas permaneceram na rua como muitos desejam. Me parece até para perpetuar uma ação que desenvolvem dentro desse tema", continuou.

O discurso do prefeito se seguiu ao do secretário de Assistência Social, Carlos Bezerra Júnior, que citou a decisão do STF. "Quando eu ouço que São Paulo tem que apresentar um projeto em 120 dias para a população em situação de rua, eu falo 'está muito longe de São Paulo'. Nosso projeto foi apresentado e está sendo cumprido há dois anos", disse o secretário.

Bezerra e Lancellotti mantinham contato diários para resolver casos pontuais de falta de vagas de acolhimento e doações de marmitas para serem distribuídas em pontos da cidade com grande concentração de sem-teto. Há algumas semanas, porém, o contato cessou após as discussões escalarem para acusações mútuas de mentirem e de politizar o problema de falta de moradia em São Paulo.

Pouco antes, o secretário e o padre estiveram em reunião do prefeito com o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, para falar sobre a instalação de grades em torno dos canteiros da praça da Sé.

A ação foi duramente criticada por Lancellotti, que a classificou como higienista e ameaçou deixar o cargo de coordenador da Pastoral do Povo de Rua. Na ocasião, Nunes se mostrou irritado com as críticas à sua gestão e chegou a chorar.

O embate mais recente entre o padre e a gestão municipal se deu em torno do conceito "housing first" (moradia primeiro, na tradução) que, segundo a prefeitura, norteia o programa de acolhimento Vila Reencontro, iniciado em julho do ano passado. Casas de 18 metros quadrados foram montadas para abrigar famílias que vivem há menos de dois anos nas ruas. Segundo o padre, porém, o projeto não concede autonomia às famílias, o que contradiz o conceito.

De acordo com o censo da população de rua divulgado pela gestão Nunes no início do ano passado, a cidade tem 31.884 pessoas sem-teto, o que representa aumento de 31% em relação a 2019, ano do levantamento anterior. Em relação a 2015, quando havia 15.905 moradores de rua, o número dobrou.


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