Entrevista
Agência Brasil: Sabe-se que o governo anterior tinha uma política, verbalizada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, de não demarcar nenhum território de comunidade tradicional. Porém, as lideranças com quem conversamos argumentam que o problema vai além do governo anterior. A partir da sua experiência, é possível perceber uma resistência dos agentes do Estado brasileiro em dar celeridade à titulação dos territórios?
Lívia Tinôco: Infelizmente, o problema da morosidade dos processos de titulação no Brasil é resultado de décadas de omissão do Estado brasileiro. O problema não está concentrado em um ou outro governo federal ou estadual, mas ele está presente em todos eles, em todos. O país e os seus poderes constituídos, Legislativo, Executivo e Judiciário, jamais priorizaram a reparação histórica e os mandamentos constitucionais que determinaram a valorização cultural e histórica dos quilombos e o próprio reconhecimento da propriedade definitiva de seus territórios.
Agência Brasil: É possível identificar algum padrão na demora para titulação dos territórios quilombolas?
Lívia Tinôco: Nós podemos perceber facilmente um padrão de morosidade em cada um dos poderes. Por exemplo, quando o Legislativo quer priorizar uma política pública, ele faz isso por meio do orçamento público. A titulação das terras quilombolas é um processo que demanda investimentos públicos vultosos, depende de recursos para pagamento da desapropriação e das atividades do Incra, mas o legislativo brasileiro claudica ano após ano em dispor desses recursos.
Houve ano em que o Congresso Nacional destinou recursos para essas desapropriações que não davam para desapropriar duas fazendas no Brasil. No ritmo permitido pelo orçamento que tem sido previsto pelo Legislativo, nós vamos levar mais de dois milênios para titular e entregar os territórios aos seus proprietários constitucionais que são as comunidades quilombolas.
Agência Brasil: E no caso do Judiciário?
Lívia Tinôco: A gente pode lembrar, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu, em 2004, uma ação contestando o decreto que regulamentava o procedimento de regularização dos territórios quilombolas. O Supremo só julgou essa ação em 2018. Foram 14 anos para reconhecer que o processo previsto no decreto era constitucional. Enquanto isso, as comunidades sofriam no compasso de espera com os trabalhos administrativos travados no Brasil afora.
Agora em 2021, o STF decidiu que o prazo razoável de duração desse processo administrativo para o poder Executivo iniciar os trabalhos e titular as terras quilombolas é de dois anos. Mas, olhe o contrassenso: os nossos tribunais tem dezenas de processos em curso, por muito mais de dois anos, para que eles digam exatamente isso que o Supremo disse, que a duração razoável é de 24 meses. Enquanto isso, os processos estão parados.
Agência Brasil: No Executivo também é observado esse padrão de morosidade?
Lívia Tinôco: Tanto no Poder Executivo Federal, quanto nos estaduais, a morosidade está não só no desempenho dos estudos antropológicos, dos levantamentos fundiários, das avaliações de terras, das notificações que precisam ser feitas aos proprietários, das desapropriações, mas também na demora em superar o padrão de desrespeito à Convenção Internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
É uma convenção internacional da qual o Brasil é signatário há muitos anos e que determina que todas as políticas públicas que venham a impactar essas comunidades sejam procedidas de consultas prévias, livres e informadas. Mas o poder público ignora grosseira e solenemente essa convenção. Ele viola os direitos de participação das comunidades em diversas situações e autoriza, ou executa por si mesmo, empreendimentos e obras que mutilam esses territórios quilombolas.
Então, são diversas as mazelas que nós visualizamos como padrão. Talvez todas elas possam ser identificadas por aquilo que se costuma chamar de racismo estrutural, que é a falta de condições existentes, ou de vontade política, ou as próprias condições materiais dos órgãos, para realizar o direito das comunidades negras desse país.
Agência Brasil: No caso do quilombo da Mãe Bernadete, o território é cercado ou mesmo atravessado por rodovia, presídio e um polo industrial, inclusive a comunidade denuncia dutos com produtos químicos que colocam em risco a água do local. Qual a avaliação que podemos fazer desse caso?
Lívia Tinôco: O caso do Quilombo Pitanga dos Palmares é um dentre tantos outros em idêntica situação nesse país. No Brasil, há muitas comunidades reconhecidas a partir de 1988, e pela Fundação Cultural Palmares, e que há mais de 25 anos, algumas há 30 anos, não tiveram seus processos de identificação, delimitação e titulação finalizados.
Então, a situação desses outros territórios é idêntica ao do Quilombo Pitanga dos Palmares, não só porque eles também sofrem com a demora das titulações, mas porque eles sofrem com a violação do seu direito de participação, eles sofrem com as pressões dos empreendimentos, eles sofrem com o preconceito da sociedade e com o desrespeito. O que eu posso dizer é que é tenebroso que, para prestar atenção ao território de mãe Bernadete, a sociedade brasileira precisa assistir a dois assassinatos dentro daquele território. A violação dos direitos dos povos quilombolas ela não é uma violação pontual, ela é uma violação sistemática.
Tags:
Direitos Humanos | mãe Bernadete | procuradora Lívia Tinôco | violações a quilombos
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