MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - Uma usina de álcool e açúcar que figura em lista das maiores empresas do agronegócio brasileiro busca garantir a posse de fazendas dentro de um território onde vivem indígenas isolados, no noroeste de Mato Grosso. Para isso, a empresa tenta apagar a existência dos indígenas. Essa existência é atestada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) há mais de 20 anos.

A Coprodia (Cooperativa Agrícola de Produtores de Cana de Campo Novo do Parecis), que diz produzir 180 milhões de litros de etanol e 2,7 milhões de sacas de açúcar por ano, reivindica na Justiça Federal o direito de explorar duas fazendas na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, na região de Colniza (MT), na divisa com Amazonas.

Documentos sobre as propriedades, registros do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e relatórios sobre a ocupação da área mostram que a Coprodia tem propriedades rurais dentro da terra indígena.

A informação foi confirmada à Folha de S.Paulo pelo advogado da cooperativa, Francisco Faiad.

"Fizemos duas perícias, e não há nenhum vestígio de posse indígena. Está na Justiça Federal um pedido para que a área da Coprodia seja retirada dessa demarcação entre aspas", disse Faiad. "As perícias não constataram nem indígenas e nem vestígios."

A primeira interdição da área foi feita em 2001 pela Funai, diante da constatação da existência de kawahivas que optam pelo isolamento na região. Expedições feitas até 2006 constataram 45 acampamentos provisórios dos indígenas.

Em 2007, a Funai validou as conclusões de relatório antropológico que atestou a existência e presença dos indígenas em isolamento. No mesmo ano, o órgão determinou restrição de uso da área até a demarcação definitiva. O ingresso só é autorizado para integrantes da Funai.

"Os kawahivas isolados do Pardo vivem da coleta, da pesca e da caça, nesta ordem de importância", citou a perícia. "Em função do estado de fuga permanente a que estão submetidos, os kawahivas atingiram um alto grau de especialização em se deslocarem por todo aquele território, semeando estrategicamente dezenas de acampamentos."

Diferentes povos indígenas se denominam kawahivas. Em 1913, conforme o relatório técnico da Funai, houve contato de três subgrupos pelo marechal Cândido Rondon, militar e sertanista brasileiro. O etnólogo e antropólogo francês Lévi-Strauss permaneceu por duas semanas com um pequeno grupo kawahiva, 25 anos depois de Rondon, segundo o documento.

"Os dados de que dispomos até agora nos levam a considerar que o grupo local Kawahiva do Rio Pardo é composto por, pelo menos, duas famílias extensas e cuja população total deve situar-se entre um mínimo de 19 e um máximo de 26 pessoas", apontou a Funai em 2007.

Em 2016, o Ministério da Justiça declarou o território de 411,8 mil hectares ?quase o triplo da área da cidade de São Paulo? como de posse permanente dos indígenas. Até hoje, não houve homologação definitiva da terra indígena, uma atribuição do presidente da República, o que vem alimentando conflitos, desmatamento e grilagem nas bordas do território.

Mesmo com identificação de indígenas isolados, confecção de relatório técnico sobre a existência de grupos kawahivas e portaria de restrição de uso da área, a Coprodia teve uma área embargada pelo Ibama por desmatamento irregular.

O embargo ocorreu em 2009, e envolveu um pedaço da Fazenda Cafezal I, conforme dados públicos sobre o embargo. A pedido da reportagem, o ISA (Instituto Socioambiental) cruzou as coordenadas geográficas informadas com as da terra indígena e constatou que a fazenda está dentro do território tradicional.

O Simex (Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira), que usa imagens de satélite para mapear locais com esse tipo de atividade, detectou exploração dentro do território em 2021. A análise é feita pelas organizações Imazon, Imaflora, Idesam e ICV (Instituto Centro de Vida).

Segundo o advogado da Coprodia, a exploração de madeira se deu "muitos anos atrás, há 10 ou 15 anos". Faiad disse desconhecer notificação sobre embargo de área pelo Ibama.

A cooperativa diz em seu site colaborar com a preservação da floresta amazônica. "Desde dezembro de 2006, a Coprodia mantém uma área de 17 mil hectares de reserva de floresta amazônica nativa em Colniza, contribuindo para a preservação ambiental desse importante patrimônio da biodiversidade para as gerações futuras."

Num ranking feito pela Forbes no Brasil sobre as maiores empresas do agronegócio em 2022, a usina aparece na posição número 89. A receita do grupo, conforme o ranking, foi superior a R$ 1 bilhão.

Segundo análise feita pela Funai, os títulos que estão na origem das posses de áreas na terra indígena são "todos eles títulos precários e concedidos nesta condição pelo Instituto de Terras de Mato Grosso".

A área virou um oásis de floresta em meio a uma ocupação acelerada em seu entorno.

"Atualmente, a Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo está cercada por grileiros e madeireiros que se instalaram no Amazonas e em Mato Grosso, no que pode se considerar um verdadeiro ?abraço da morte?", afirmou o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato) em uma nota técnica divulgada em maio deste ano.

Houve um aumento expressivo do desmatamento em reservas extrativistas vizinhas, e uma estrada ilegal aberta por grileiros e madeireiros ?que passa a menos de 3 km da terra indígena? tem servido de rota para invasores que "ameaçam a existência dos isolados", segundo o OPI.

O Ministério da Justiça autorizou o uso da Força Nacional de Segurança Pública na região em 2021 e 2022, diante dos conflitos e invasões.

O indigenista da Opan (Operação Amazônia Nativa) Elias Bigio, ex-coordenador geral da área de indígenas isolados da Funai, afirma que houve saída de ocupantes da área em 2017, além de embargos de madeireiras. Mas a pressão prossegue, tanto na Justiça quanto nas imediações do território. "Há um ponto de acesso pela reserva extrativista, e é por ali que ocorrem invasões."

Casos como o da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo poderão ter o rumo decidido a partir da votação sobre o marco temporal no STF (Supremo Tribunal Federal), cujo julgamento está previsto para ser retomado nesta quarta (30).

O marco temporal é defendido por ruralistas e proprietários de áreas como a da Coprodia. Pela tese, têm direito à demarcação indígenas que estavam na área no momento da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. A tese limita as demarcações, por ignorar os históricos de conflitos, expulsões e deslocamentos de grupos indígenas.

Os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes votaram contra o marco temporal. Nunes Marques votou a favor.


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