SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma expedição científica em 2017 ao ponto mais alto do país, o Pico da Neblina, no estado do Amazonas, revelou uma diversidade de espécies ainda desconhecida, incluindo duas novas famílias de anfíbios do grupo conhecido como braquicefalóideos (sapos de pequeno porte com o quarto dedo alongado e que não costumam pular longas distâncias).

A primeira espécie, batizada de Caligophryne doylei (o nome do gênero vem do latim "caligo", que significa névoa, e "phryno", que é sapo em grego, enquanto o epíteto específico "doylei" é em homenagem a Arthur Conan Doyle, autor de Sherlock Holmes), é um representante do grupo dos brachiocefalóideos de tamanho mediano, com aproximadamente 3 cm de tamanho, cabeça com focinho fino e o corpo coberto por rugas. Ele é o único representante da nova família Caligophrynidae.

Já a segunda espécie, Neblinaphryne mayeri (o gênero significa "sapo da Neblina", e a espécie homenageia o general Sinclair James Mayer, da divisão Sistema Defesa, Indústria e Academia das Forças Armadas do Brasil), é também endêmica do Pico da Neblina e foi incluída na família Neblinaphrynidae. A sua linhagem é mais antiga do que Caligophrynidae, e o grupo apresenta características consideradas mais primitivas em relação aos outros sapos dos Brachycephaloidea.

A expedição foi coordenada pelo herpetólogo (estudioso de répteis e anfíbios) e professor do Instituto de Biociências da USP Miguel Trefaut Rodrigues e contou com membros do seu laboratório, entre os quais os biólogos Renato Recoder e Sérgio Marques-Souza. O artigo descrevendo as duas novas espécies, gêneros e famílias de sapos foi publicado na revista especializada Molecular Phylogenetics and Evolution e conta com a participação também de pesquisadores da França e dos Estados Unidos.

O Pico da Neblina tem 2.995 m de altitude e está localizado na Serra da Neblina, na fronteira do Brasil com a Venezuela, na região do Parque Nacional do Pico da Neblina, cujo território está entre os municípios de Santa Isabel do Rio Negro (AM) e São Gabriel da Cachoeira (AM).

Parte da base do parque é dentro do Território Indígena Yanomami (TI Yanomami). Para chegar ao pico, é necessário um helicóptero do Exército brasileiro. A equipe contou com a ajuda das Forças Armadas.

Os cientistas fizeram um trabalho de campo por oito dias, onde coletaram vários exemplares de sapos, lagartos e cobras. Após a expedição, o material foi levado para o laboratório e tombado na Coleção de Herpetologia do Museu de Zoologia da USP, no Ipiranga, zona sul da capital paulista.

O trabalho minucioso de separação (triagem) do material coletado, bem como a análise dos indivíduos para saber se eram espécies distintas ou não, demorou cinco anos. Nesse meio tempo, um outro artigo, descrevendo duas novas espécies de lagartos do gênero Riolana, já foi publicado.

No estudo, os cientistas fizeram um trabalho comparativo do molecular (material genético), morfologia (como características externas e anatomia interna) e calibraram a árvore filogenética para os ancestrais comuns de cada linhagem (calibrar a árvore significa, grosso modo, colocar uma datação ?em milhões de anos? de quando aquele ramo se dividiu, a partir do conhecimento existente de outros estudos com DNA e fósseis).

O novo achado surpreende porque é raro descrever uma nova família para vertebrados. "O primeiro grupo a se separar foi a família Neblinaphrynidae [do sapinho-da-Neblina], há cerca de 55 milhões de anos [coincide com a origem do grande grupo Brachycephaloidea]. E o outro, Caligophrynidae, foi mais recente, há cerca de 45 milhões de anos", explica Rodrigues.

Como as duas espécies são totalmente diferentes das demais famílias já conhecidas para o grupo, a hipótese mais plausível é que a separação com as demais linhagens de braquicefalóideos ocorreu logo após o evento de soerguimento do maciço onde está o Pico da Neblina, e a partir daí o grupo ficou "parado no tempo". "Podem ser realmente relictos do passado, mas também podem ser representantes de uma diversificação muito maior que só restaram eles. Isso não temos como saber", disse.

A ideia de que essa diversificação tenha ocorrido em todos os picos do conjunto de montanhas não é improvável. Estudos já bem consolidados na biologia descrevem como os tepuis (tipos de campos de altitude em montanhas no meio da Amazônia) são ambientes com alta incidência de espécies endêmicas, aquelas que são exclusivas de um lugar.

"As expedições para os tepuis na Amazônia brasileira foram feitas no século passado, e quase não tínhamos informações. Tiveram alguns estudos mais recentes da Venezuela e das Guianas, mas nada do Brasil. Agora a gente espera conseguir amostrar também uma diversidade nos outros pontos que fizemos coletas, como a serra do Imeri", explica.

Rodrigues também liderou uma expedição para esse pico, que fica do lado norte da serra da Neblina. Segundo ele, muitas espécies novas também foram descobertas ali, mas não pode falar ainda sobre elas antes da publicação oficial em um estudo científico. "O que posso dizer é que esses locais são berços de formação de espécies, e ao mesmo tempo são museus da biodiversidade, porque eles preservam coisas muito antigas, que tiveram sua diversificação há muito tempo", finaliza.


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