SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Ossos encontrados num sítio arqueológico do sul da Argentina indicam que os indígenas da região incorporaram rapidamente os cavalos de origem europeia ao seu estilo de vida. Eles passaram a criar os animais ?e, provavelmente, a montá-los? mais de um século antes dos primeiros registros escritos dessa atividade na área, e pouco depois da chegada dos equinos ao país.
A análise, publicada em edição recente do periódico especializado Science Advances, traz pistas importantes sobre as transformações trazidas pela introdução dos cavalos na América do Sul durante a era colonial, reforçando a ideia de que os próprios grupos indígenas logo perceberam o potencial econômico e mesmo militar dos animais.
"Houve, por parte dos caçadores do nosso continente, uma aprendizagem rápida sobre a forma de aproveitar o cavalo e incorporá-lo a suas economias e cosmovisões, bem como a transmissão desse conhecimento", explicou à Folha Juan Bautista Belardi, da Universidade Nacional da Patagônia Austral. Belardi assina o novo estudo junto com William Timothy Taylor, da Universidade do Colorado em Boulder (EUA), e colegas da Argentina e de outros países.
A equipe internacional analisou ossos e artefatos encontrados no sítio arqueológico Chorrillo Grande 1, perto do rio Gallegos e da fronteira sul da Argentina com o Chile. A colonização da Patagônia argentina pelos espanhóis ocorreu bem depois de sua chegada às regiões do país mais próximas do Brasil, e os primeiros relatos escritos sobre indígenas a cavalo na região só apareceram em 1741.
Já no século 19, grupos nativos como os aonik?enk (também conhecidos como tehuelche) e os gününa kuna (ou puelche) se tornaram famosos como peões que usavam os cavalos para controlar seus próprios rebanhos de gado e para caçar guanacos (parentes selvagens das lhamas) e emas.
Um dos debates entre arqueólogos e historiadores é como e quando essa "cultura equina" se desenvolveu na América do Sul e em outros lugares do continente. Até o fim da Era do Gelo, por volta de 10 mil anos atrás, havia espécies nativas de equinos em território americano ?tanto cavalos propriamente ditos quanto animais do gênero Hippidion, que lembravam jumentos.
Depois do desaparecimento dessas espécies, talvez por uma combinação de mudanças climáticas e efeitos da caça, os cavalos só voltariam a trotar em solo americano com a chegada dos europeus. Em muitos casos, como na invasão do Império Asteca e do Império Inca, os espanhóis os usaram como "arma secreta" contra os exércitos indígenas. Em outros locais, porém, tentativas fracassadas de colonização tiveram como efeito colateral a fuga de equinos ou o abandono dos animais na natureza.
Foi o que aconteceu após a fundação de Buenos Aires, em 1536. A primeira povoação fundada no local teve de ser abandonada poucos anos mais tarde por falta de recursos e conflitos com os indígenas locais, e o gado bovino e equino dos colonos acabou, em parte, desgarrando-se deles. Décadas mais tarde, quando os espanhóis voltaram à região da atual capital argentina, já havia nos pampas circundantes uma grande população de cavalos ferais (descendentes de animais domésticos que voltaram à vida selvagem).
Acredita-se que esses e outros cavalos desgarrados deram origem aos rebanhos mais tarde criados pelos indígenas. O estudo realizado na Patagônia analisou ossos desses cavalos, datou-os usando o método do carbono-14 (o mais usado em amostras de matéria orgânica relativamente recentes) e também examinou seu DNA. A equipe estudou ainda o material orgânico encontrado em recipientes de cerâmica, usados pelos antigos habitantes de Chorrillo Grande 1 para cozinhar.
Os dados de carbono-14, obtidos a partir de ossos das patas da frente e de trás e de um dente dos equinos, indicam que ao menos um dos animais ali morreu antes do ano de 1700. Outras datas do sítio, obtidas a partir de material orgânico cozido e de um osso de guanaco caçado pelos indígenas, foram usadas para montar um modelo estatístico da ocupação no local. O resultado é um período que vai do fim do século 16 até 1650 ?bem antes, portanto, do contato inicial dos colonizadores com os cavaleiros nativos da Patagônia.
As características dos ossos indicam a presença de no mínimo três indivíduos da espécie (ao menos um cavalo adulto, com idade entre 6 e 10 anos, e dois juvenis, que tinham entre um ano e meio e três anos e meio). Dois dos bichos eram do sexo feminino, de acordo com o DNA.
Análises químicas dos ossos indicaram que os equinos cresceram na região. Por fim, os restos orgânicos na cerâmica batem mais de perto com as gorduras e proteínas típicas de carne de guanaco, mas as fraturas e marcas de queima nos ossos de cavalo sugerem que eles também podem ter sido usados como alimento.
"Com base nas evidências que vemos em Chorrillo Grande, não temos como dizer com certeza que as pessoas estavam montando esses cavalos, mas parece bastante provável que os estavam criando, por causa de fatores como a prevalência de animais mais jovens ali", explica Taylor. "Criar cavalos, mesmo que seja só para consumir sua carne, exige muita mobilidade, porque eles são muito fortes, arredios e difíceis de controlar. Acho bem provável que esses antigos criadores de cavalos da Patagônia também fossem cavaleiros."
Segundo os pesquisadores, tanto o ambiente quanto a cultura dos caçadores-coletores de região facilitaram a adoção da criação de cavalos em seu modo de vida ?algo que se repetiu em contextos parecidos entre os guaicuru (ancestrais dos atuais kadiwéu) no Pantanal e nas Grandes Planícies norte-americanas, por exemplo.
"Minha suspeita é que fatores como a vida em ambientes abertos com capim, a vida altamente móvel e a pré-existência de relações ecológicas ou culturais com animais de grande porte teriam predisposto alguns povos à relação com os cavalos", diz Taylor. "Esses ambientes são espaços ideais para as necessidades ecológicas dos equinos: grandes extensões planas, pasto e água", acrescenta Belardi.
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