SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A ciência é incapaz de verificar se as renas pertencentes a um certo bom velhinho conseguem mesmo dar a volta ao mundo na noite de Natal, mas tudo indica que, de fato, elas possuem uma espécie de superpoder que poderia ajudá-las nessa tarefa. Os bichos são capazes de ruminar seu alimento mesmo durante um estado semelhante ao sono sem sonhos, descansando o cérebro e nutrindo-se ao mesmo tempo.

Os experimentos que comprovaram isso, se não foram realizados exatamente no polo Norte, passaram perto: as renas em questão vivem na Universidade Ártica da Noruega, em Tromso, na região norte do país. Ao investigarem as características peculiares do relógio biológico dos animais, pesquisadores da instituição norueguesa perceberam que o sono dos animais parece incluir uma fase de alimentação que não bate exatamente com o que se costuma ver em outros mamíferos.

O estudo, liderado por Gabriela Wagner e feito em parceria com cientistas da Suíça, acaba de sair no periódico científico Current Biology. Wagner e seus colegas obtiveram dados comportamentais e de atividade do cérebro (por meio de eletroencefalogramas) de quatro fêmeas adultas da espécie, criadas em cativeiro na universidade. (As renas são um dos casos -hoje relativamente raros- de mamíferos de grande porte que incluem tanto populações domesticadas quanto selvagens.)

Já havia indícios de que o organismo desses cervídeos do Ártico não segue, ou segue muito fracamente, o chamado ritmo circadiano, que regula o funcionamento diário do corpo dos seres humanos e de muitos outros animais. Trata-se de uma espécie de relógio interno das células que é "acertado" de acordo com as variações cíclicas naturais da noite e do dia, envolvendo atividades como sono, alimentação e detalhes mais sutis do funcionamento do organismo.

Tudo isso significa que o ritmo circadiano "normal" segue mais ou menos as 24 horas de cada dia. No caso das renas, porém, isso não parece acontecer -seu corpo, ao que tudo indica, acompanha apenas as mudanças na presença de luminosidade no ambiente. Trata-se de um aspecto que, de fato, é muito variável no Ártico, cujos dias de verão são longuíssimos e cujas noites de inverno são igualmente compridas.

Ao acompanhar a atividade cerebral das renas, o grupo suíço-norueguês observou as mudanças na transmissão de impulsos elétricos do cérebro que são típicas de estados já conhecidos, como o despertar completo, o sono conhecido como REM (sigla de "movimento rápido dos olhos", associado aos sonhos) e o sono NREM (ou "profundo", "sem sonhos", em que o REM não ocorre).

Em média, as renas passam 5,4 horas por dia no sono NREM, pouco menos de 1h no sono REM --e quase 3 horas ruminando. O que é esperado para herbívoros do grupo delas (e também para outros herbívoros domésticos, como bois e ovelhas). O processo de ruminação envolve, entre outras coisas, regurgitar o alimento já engolido e mastigá-lo de novo, facilitando a digestão da matéria vegetal.

Acontece que os pesquisadores identificaram uma semelhança considerável entre as ondas cerebrais das renas enquanto ruminam e as do sono NREM. Os bichos também reagem bem menos a estímulos e fiquem bastante quietos, sentados ou em pé.

Além das semelhanças intrigantes, outro detalhe experimental sacramentou o papel de "quase sono" do ato de ruminar. Depois que as renas foram submetidas a uma curta fase de privação de sono, a ruminação permitiu que elas voltassem a um estado de descanso semelhante ao produzido por dormir algumas horas.

"Quanto mais as renas ruminam, de menos sono NREM elas necessitam", resume Melanie Furrer, pesquisadora da Universidade de Zurique, na Suíça, que também assina o estudo. "Achamos que é muito importante para elas economizar tempo e resolver simultaneamente suas necessidades digestivas e de sono, especialmente durante os meses de verão."

Furrer explica que passar o máximo de tempo se alimentando durante o verão ártico, quando a comida é mais abundante, ajudaria as renas a se preparar para o período de vacas magras do inverno. "Ruminar aumenta a absorção de nutrientes, então é crucial para elas passar tempo suficiente fazendo isso durante o verão para ganhar peso."

Uma das limitações do estudo é que ele foi feito em cativeiro, mas seria muito mais complicado e invasivo para os animais fazer medições similares em renas selvagens.


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