SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A letra de "Hollywood" sai da caixinha de som na voz da cantora e atriz Lucinha Lins como se fosse um recado. "Ói nós aqui", diz trecho da música de Chico Buarque, do disco "Os Saltimbancos Trapalhões" (1981), nos ensaios de balé em uma sala improvisada no barracão da Rosas de Ouro, na zona norte de São Paulo.
Por mais distantes que sejam os descompassos quando comparadas com o Carnaval, aulas de dança clássica têm sido oferecidas para crianças e adolescentes em escolas de samba paulistanas. Ao menos três agremiações paulistanas misturam balé e samba em seus barracões.
São projetos sociais que no futuro podem até levar para a avenida meninas e meninos que aprenderam a dançar embalados pelo piano mais suave que o repique da bateria.
Moradora no Limão, também na zona norte, Helena Barauva dos Santos, 6, é uma das primeiras a chegar para o ensaio na Rosas de Ouro e está sempre com olhos estáticos às orientações sobre a coreografia feitas pelo professor Emerson Robert Alves dos Santos, o dançarino Robert Alves, 19.
Filha de passista, a promotora de eventos Marcela Ribeiro, 27, Helena já deu algumas indiretas de que gostaria de desfilar no Carnaval.
Ainda é cedo para se pensar nisso, diz a mãe, que atualmente comemora os primeiros frutos das aulas de dança. "O balé ajudou a melhorar muito o seu comportamento", afirma Ribeiro, sobre a postura dedicada da menina.
O balé foi retomado em julho passado na Rosas de Ouro, depois de as aulas terem sido congeladas por quase duas décadas, segundo Osmar Costa, vice-presidente da agremiação.
Ele diz que o projeto pode qualificar crianças para o samba, mas são nos benefícios sociais que a Rosas de Ouro está de olho --os collants e sapatilhas, por exemplo, são todos doados para quem participa das aulas. "Abrimos a escola para famílias", afirma Costa.
A proposta de unir Carnaval e balé até já deu certo na agremiação. A bailarina Sueli Aparecida Costa, 65, iniciava como porta-bandeira da Rosas de Ouro, quando foi convidada para criar a escolinha em 1995. Como naquela época, atualmente ela está à frente do projeto.
"Para elas [crianças], a dança é a realização de um sonho", afirma a coordenadora do curso, que foi por mais de dez anos a porta-bandeira oficial da escola da Freguesia do Ó.
Uma das menores da turma, Helena fica na primeira fila no início dos ensaios do grupo, que tem cerca de 25 crianças. Entre elas há apenas um menino, Pietro Araújo Massari, 10.
O balé no barracão da escola de samba mudou a vida do garoto e de toda a família de Pirituba, outro bairro da zona norte paulistana, afirmam o pai, Thiago Massari, 34, e a madrasta Raphaela Reis, 30.
Pietro tem TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) e, de acordo com Reis, médicos avaliam um suposto diagnóstico de autismo. O menino estava sempre machucado, o que não acontece mais. Fazer parte das aulas de dança o deixou mais calmo e focado, melhorou sua participação e interação na escola.
"O balé é matemático, precisa estar concentrado, ter disciplina", afirma a professora Sueli Costa.
O garoto chegou a conhecer a escolinha da bateria da Rosas de Ouro e se assustou com o barulho. Mas se encantou com a dança quando foi acompanhar a irmã, Lunna, 7, que havia sido matriculada nas aulas de balé. Passou a integrar a turminha e a ouvir música clássica.
Pietro não faz todos os passos e movimentos -ele não realiza o exercício na barra, por exemplo. Mas ajuda as meninas a se posicionarem nela.
É vestido com um colete, que deve ter sido usado em algum desfile da escola, e uma baqueta velha da bateria, como se fosse uma varinha na mão, que o menino vira um mágico na coreografia, que transforma o ambiente de Carnaval em balé no inicio da dança.
"Agora estamos pensando em apresentar o teatro a ele", afirma o pai.
AULAS CONCORRIDAS
Ter plié e ritmista no mesmo ambiente não é novidade na região norte de São Paulo. Na Unidos de Vila Maria, as aulas de balé fazem parte dos projetos sociais da escola há pelo menos 20 anos.
Atualmente, há quase cem crianças, com idade a partir de cinco anos, matriculadas nas turmas oferecidas pela escola, que, além do samba, tem fama pela patinação.
"O balé é um dos cursos mais procurados", afirma Vânia Vilhaena, 43, diretora do departamento social da Vila Maria.
A dança passou a ser oferecida, segundo ela, porque era uma demanda das mães da comunidade. "Bailarinas que se formaram aqui hoje são professoras de novas gerações", diz.
Na Vila Maria, crianças e adolescentes, que não pagam nada, receberam as fantasias para a apresentação de fim de ano, que teve na montagem do cenário peças usadas no desfile deste ano no Sambódromo do Anhembi.
Do outro lado da cidade, há uma fila com cerca de cem crianças à espera pela abertura de novas vagas nas aulas de balé na Estrela do Terceiro Milênio, escola de samba do Grajaú, na zona sul.
A ideia é ampliar o número de vagas em 2024 -pelo menos 50 devem ser abertas, espera Sílvio Antonio de Azevedo Leite, 62, o Silvão, presidente da escola, que está fazendo um projeto de captação de recursos para o balé na Terceiro Milênio.
"A procura só não é maior que a das aulas de bateria, mas supera a de passistas", afirma.
De acordo com o bailarino André Silva, 59, professor voluntário, os pais começaram a perceber mudanças no comportamento cívico, corporal e cognitivo das crianças alunas de balé.
"Enxergo talentos que podem ser lapidados e se tornarem profissionais, não apenas dançarinos, mas que lecionem também", diz.
O balé na Estrela do Terceiro Milênio, acrescenta ela, preencheu um vazio cultural naquela região periférica da cidade. "Escola de samba é uma escola de arte."
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