SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Medições feitas com base na estrutura de esponjas marinhas centenárias sugerem que a Terra já pode ter esquentado 1,7°C em relação à temperatura média anterior à era dos combustíveis fósseis.
Se as observações forem confirmadas, isso significa que o aquecimento do globo já se aproxima de deixar para trás um dos objetivos do Acordo de Paris, hoje o principal tratado internacional para enfrentar a emergência climática, indicando que o problema é ainda mais urgente do que se imaginava.
Os dados acabam de sair em artigo na revista especializada Nature Climate Change. "É como se tivéssemos adiantado o relógio da mudança climática em cerca de uma década", resumiu um dos coordenadores do estudo, Malcolm McCulloch, do Instituto dos Oceanos da Universidade do Oeste da Austrália, em entrevista coletiva online.
"Trata-se de um conjunto único de dados, difícil de obter, que nós conseguimos analisar", complementou o outro líder da pesquisa, Amos Winter, da Universidade do Estado de Indiana (EUA).
A chave para as conclusões da dupla é a estrutura física das esponjas da espécie Ceratoporella nicholsoni, presentes no Caribe, perto das ilhas de Porto Rico e Saint Croix, e com parentes próximos no Brasil, segundo Winter. Esses invertebrados, com estrutura corporal muito primitiva, semelhante à dos corais, crescem muito lentamente e podem viver séculos, sendo encontrados a dezenas de metros de profundidade.
Por isso, a estrutura calcária dos animais --chamados de "escleroesponjas"-- pode ser usada para investigar como eram as condições ambientais do oceano ao longo de seu tempo de vida.
De fato, a variação na proporção dos elementos químicos estrôncio e calcário (a chamada razão Sr/Ca) incorporados às camadas do esqueleto é o que os pesquisadores chamam de paleotermômetro, registrando idas e vindas da temperatura da água com resolução estimada de 2 anos.
Há ainda outra vantagem no uso da Ceratoporella nicholsoni, dizem os pesquisadores. Por crescer em profundidades que vão de 30 m até quase 100 m, a esponja não está sujeita às flutuações mais rápidas e passageiras que afetam a temperatura da água perto da superfície. Por isso, argumentam eles, a razão Sr/Ca dos invertebrados reflete bem as tendências gerais de aquecimento ou resfriamento da água dos oceanos.
McCulloch, Winter e seus colegas combinaram os dados brutos sobre a variação proporcional dos elementos químicos com registros históricos sobre o clima e dados de temperatura obtidos diretamente no mar e em terra. Esses últimos dados, conseguidos com termômetros relativamente confiáveis, são mais recentes, datando da segunda metade do século 19 em diante.
Mas algumas das esponjas da análise são bem mais antigas, remontando ao começo do século 18 (para efeito de comparação, elas começaram a se formar quando o ouro tinha acabado de ser descoberto em Minas Gerais e Tiradentes ainda não tinha nascido). As informações históricas e de termômetros serviram para "calibrar" as oriundas das esponjas, atribuindo-lhes datas mais específicas.
O resultado, segundo os cientistas, acompanha com bastante precisão as medições mais convencionais da temperatura e alcança períodos em que não havia termômetros confiáveis. A estrutura calcária das esponjas registra bem, por exemplo, os períodos de resfriamento que aconteceram no começo do século 19 por causa de erupções vulcânicas como a de Tambora, responsável por gerar o chamado "Ano sem Verão" de 1816.
Ao mesmo tempo, porém, as esponjas parecem captar uma fase inicial de aquecimento causado pela ação humana, com a primeira intensificação de queima de combustíveis fósseis após o início da Revolução Industrial, a partir dos anos 1860. Acontece que as medições diretas de temperatura dos oceanos só mostram esse processo 80 anos mais tarde.
Somando esse dado à aceleração do aumento das temperaturas em terra firme (hoje, calculam eles, duas vezes mais rápido fora dos oceanos do que dentro deles), o total do aumento médio da temperatura hoje seria cerca de 0,5°C superior ao calculado pelo IPCC, o painel climático das Nações Unidas.
Especialistas ouvidos pela Nature Climate Change, entretanto, destacaram que é preciso interpretar os resultados com cautela, em especial por suas implicações para a diplomacia da crise climática. Afinal, o Acordo de Paris fala em manter o aquecimento do planeta "bem abaixo" de 2°C em relação à média pré-industrial e, se possível, em torno de apenas 1,5°C. Será que esse limite foi cruzado?
"A maneira como essas descobertas foram comunicadas tem falhas, com potencial para acrescer uma confusão desnecessária ao debate público sobre a mudança climática", declarou Yadvinder Malhi, do Instituto de Mudanças Ambientais da Universidade de Oxford.
Segundo Malhi, os dados das emissões de carbono produzidas pelos seres humanos até 1900 sugerem que elas seriam insuficientes para produzir 0,5°C de aquecimento durante o século 19. O mais provável, segundo ele, caso os dados estejam corretos, é que boa parte desse aquecimento tenha origem natural.
De qualquer maneira, a meta de 1,5°C do Acordo de Paris vale para o fim deste século, observa Shaun Fitzgerald, do Centro de Reparo Climático da Universidade de Cambridge.
"Só teríamos ultrapassado essa meta caso a redução de emissões de carbono for a única medida possível, mas há várias abordagens sendo desenvolvidas para a remoção de gases-estufa da atmosfera, e isso poderia manter a meta viva."
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