BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Luciana dos Santos Nogueira, 46, acompanhou à distância o julgamento do STM (Superior Tribunal Militar) que pode pôr fim ao processo judicial contra os militares que mataram a tiros seu marido, o músico Evaldo Rosa, em 2019.

"É lamentável, muito triste o rumo que o julgamento está tomando. Se as pessoas que acompanham este caso sentem esse absurdo, imagine para mim, que sou esposa, imagine para o Davi, que é filho. É apavorante, desesperador", disse à Folha de S.Paulo.

O tribunal militar começou na quinta-feira (29) a julgar um recurso da defesa dos oito militares condenados. O relator do processo, ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira, votou pela absolvição dos militares pela morte de Evaldo -e, pelo homicídio do catador de recicláveis Luciano Macedo, propôs a redução das penas de 31 anos para 3.

Amaral, que é tenente-brigadeiro da Aeronáutica, entendeu que os militares não queriam ter matado Evaldo e que só dispararam contra o músico por tê-lo confundido com um criminoso que havia fugido do local após roubar um carro.

Foram, ao todo, 257 tiros disparados pelos militares na ação, segundo a perícia.

O erro, na visão do ministro, é justificável porque os militares julgavam estar em perigo durante a ação. Evaldo e sua família estavam, na verdade, a caminho de um chá de bebê.

Ele votou pela absolvição dos militares na morte de Evaldo alegando legítima defesa putativa, na qual o agente acredita se encontrar em situação de ameaça real, mesmo que ela não seja concreta.

Luciana estava no carro, no banco traseiro, ao lado do filho Davi Bruno Nogueira, que na época tinha 7 anos.

"Quando eu ouvi os primeiros tiros, não imaginava que fossem os militares. E quando eu avistei os militares, eu me senti segura, disse para o Evaldo: 'Calma, amor, é o quartel, é o Exército'. Eu não imaginava que os tiros estavam partindo deles -até mesmo porque a gente estava devagarinho, não era perigo nenhum, não teve ordem de parada", disse a viúva de Evaldo.

Ela conta que sequer viu o carro dos criminosos passar pela via. "Era uma rua tranquila, movimentação baixa. Não tinha nada que pudesse sugerir que eles poderiam fazer aquilo com a minha família", afirma.

"Tanto é que eu pedi socorro [depois dos tiros], mas eles zombaram de mim [...]. Como a gente não tinha nada a ver com aquela situação, eu proibi que eles [militares] chegassem perto do carro, para não plantar provas, drogas."

Depois da morte de Evaldo, a vida de Luciana virou do avesso. Técnica de enfermagem, ela teve de assumir um segundo emprego para pagar as contas.

Trabalhando em dois hospitais, ela dá plantões de 24 horas a cada dois dias. Teve de se ajustar para que o filho Davi Bruno, hoje com 12 anos, fique com os avós enquanto Luciana realiza cuidados paliativos para pacientes terminais.

A família chegou a um acordo com a AGU (Advocacia-Geral da União) para uma indenização de R$ 2 milhões, além do pagamento de pensão mensal para a esposa e o filho de Evaldo, no valor de um salário e meio para cada.

"Ainda não [recebi o dinheiro da indenização]. Esse acordo foi feito porque era a forma que dava certo. Brigar com a União, brigar com o governo federal, é sempre complicado. Eu achei melhor, sim, ter um acordo. Mas ela vai para [a fila de] precatório, entende? Então não tem previsão", completou Luciana.

Na primeira instância, os oito militares que atiraram contra o carro de Evaldo foram condenados a penas que variavam de 28 anos para soldados e cabos e 31 anos e 6 meses para o oficial que comandava o grupo.

A condenação foi pelos crimes de homicídio qualificado contra Evaldo e Luciano e tentativa de homicídio de Sérgio Gonçalves de Araújo, sogro do músico, que sofreu tiros de raspão nas costas e glúteos.

"Eu achei que a justiça tinha sido feita", conta Luciana. Ela disse que entendeu depois como funcionam os recursos no Judiciário, mas duvidou que a pena pudesse baixar tanto.

"Mesmo que eles fossem julgados pelos próprios militares, sabendo que poderiam querer beneficiar eles, reduzir a pena, eu não imaginaria que chegaria ao absurdo que foi o julgamento de quinta-feira. Foi vergonhoso."

O Superior Tribunal Militar é composto por 15 ministros, sendo dez militares e cinco civis. O presidente só tem direito ao voto de minerva, que é sempre em favor do réu. Como o relator e o revisor do processo já se manifestaram pela redução das penas, restam 12 votos para definir o resultado do julgamento.

A ministra Maria Elizabeth pediu vistas (mais tempo para análise o processo). O tribunal só deve voltar ao caso a partir do fim de março.

Evaldo foi morto em abril de 2019. Um comboio com 12 militares se deslocava do 1º Batalhão de Infantaria Motorizada Escola para os apartamentos funcionais do Exército em Guadalupe, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Eram 14h30. No caminho, os 12 militares foram informados do roubo de um Honda City metros à frente. O proprietário do carro foi rendido por uma pessoa armada, e parte do grupo criminoso fugiu do local em um Ford Ka.

Os militares do Exército tentaram perseguir o carro e, no caminho, encontraram um outro Ford Ka semelhante, que passava próximo da rota de fuga.

Evaldo dirigia o veículo a caminho do chá de bebê. Ele levava no carro o sogro, no banco do passageiro; e a esposa, o filho e uma amiga no banco traseiro.

Os militares, confundindo os veículos, usaram fuzis para atirar contra o carro. Segundo a perícia, o primeiro disparo atravessou o carro e não feriu ninguém. O segundo, porém, entrou pela caixa de rodas e passou pelo banco do motorista, "atingindo a base das costas de Evaldo Rosa dos Santos, que começou a perder os sentidos".

O carro percorreu cerca de 100 metros até parar. O catador de recicláveis Luciano Macedo, que passava pela região, viu Evaldo ferido e tentou socorrê-lo.

Mesmo desarmado e tentando prestar auxílio, ele foi alvo de uma sequência de tiros de fuzil.

"O tenente Nunes e os demais denunciados deflagraram uma excessiva quantidade de disparos de fuzil e de pistola contra o veículo Ford Ka e contra Luciano [...]. Luciano foi alvejado no braço direito e nas costas", diz trecho da denúncia do Ministério Público Militar.

Testemunha do caso, Williams Stelman Martins afirmou durante a investigação que "os militares do Exército chegaram atirando e que estavam gritando: 'é bandido, é bandido'". Ele relatou ainda que os militares agiram "com deboche" quando a esposa de Evaldo Rosa pedia socorro.

A defesa dos réus afirmou, durante o julgamento, que os militares não deveriam ser condenados considerando o cenário, com o roubo de um carro e a semelhança entre os veículos dos criminosos e da vítima.

"Esse erro é gritante e alarmantemente escusável, porque a nenhum de nós era dado agir de outra maneira naquele contexto. Talvez um episódio como este nunca aconteça, eu nunca tinha visto isso", disse Rodrigo Roca.


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