SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A quantidade de maconha para diferenciar usuários de traficantes foi um dos últimos pontos debatidos na última quarta-feira (6) durante o julgamento da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal no STF (Supremo Tribunal Federal).

Mas um critério objetivo em gramas para separar as categorias deve gerar mudanças incipientes ou nulas e manter injustiças. Segundo especialistas ouvidos pela Folha, a separação por quantidade pode, por exemplo, considerar traficante quem ultrapassar, mesmo que por pouco, o limite estabelecido.

De acordo com eles, a proposta não deve interferir em abordagens direcionadas a perfis de minorias como negros e pobres, os mais processados por tráfico no Brasil, nem levar a uma melhoria na investigação policial sobre o comércio ilegal de droga.

Por outro lado, a quantia portada não significa presunção de inocência automática, mas a chamada presunção relativa, defendida no voto de Alexandre de Moraes. Segundo essa tese, a separação entre usuário e traficante vai depende de investigação com depoimentos, perícia, coleta de provas, quebra de sigilo bancário e outras apurações que comprovem o crime.

Mas segundo o advogado Emílio Figueiredo, membro da Rede Reforma, a presunção relativa deve manter a abordagem e o testemunho policial como prova com grande peso nos processos por tráfico.

"No fim das contas se um sujeito for abordado na rua com um baseado, vai depender do tribunal de rua."

E a aplicação da lei penal na rua, segundo Figueiredo, muda de acordo com raça, classe social e o lugar na cidade. "Se você está no Leblon, é uma coisa. Muda se estiver em Madureira, Bangu, no interior do Rio de Janeiro ou em Minas Gerais."

Antes do pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Dias Toffoli, que acompanha a análise desde 2015, a última quantidade defendida foi de 10 gramas, no voto de André Mendonça --contrário à descriminalização como Cristiano Zanin e Kassio Nunes Marques.

A maior quantidade sugerida em voto até o momento foi a de 60 gramas, endossada por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber (aposentada), favoráveis à descriminalização.

Como a presunção é relativa, uma pessoa que carregue cinco embalagens com 10 gramas, cada uma, pode ser considerada traficante se houver outros indícios que reforcem essa suspeita, como blocos de anotações, outras drogas com ela e trocas de mensagem que indiquem comércio.

É o que diz Cristiano Maronna, diretor do Justa. Ainda, ele aponta que uma investigação mais robusta esbarra na política de segurança adotada no Brasil, cujos pilares são o patrulhamento ostensivo e a abordagem, atribuições das polícias militares.

"Duas em cada três mortes violentas não têm autoria esclarecida. Isso reflete nossa baixa qualidade de investigação policial por um financiamento concentrado na Polícia Militar", diz Maronna, autor de "A lei de drogas interpretada na perspectiva de liberdade." Ele não vê, por isso, mudanças na construção dos processos por tráfico.

No livro, o advogado cita casos de países como Portugal, que em 2001 descriminalizou todas as drogas para consumo --não apenas a maconha, como na discussão brasileira-- e fixou quantidades para algumas delas.

O problema no país europeu, segundo Maronna, foi a falta de financiamento da política de assistência e saúde para quem tinha problemas com drogas.

Já no México, segundo o advogado, a fixação de baixas quantidades para diferentes drogas, como maconha e cocaína, levou a um aumento de prisões por tráfico.

Para Gustavo Scandelari, coordenador do núcleo de direito criminal do Dotti Advogados e especialista em direito penal, o critério em gramas é positivo, se tiver um papel relativo no processo, porque vai balizar as decisões de juízes.

"Hoje, a análise dos juízes é feita de acordo com o caso concreto, e com 10 gramas, 20 gramas ou 50 gramas [o processado] pode ser usuário ou traficante, a depender do julgamento."

Mas o Judiciário, segundo o advogado, não deveria ser o responsável por definir a quantidade de drogas para usuários. Essa decisão deveria partir da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). "Se for olhar a lei de drogas, não tem em nenhum dispositivo quais são aquelas proibidas. A Anvisa faz essa lista e pode mudá-la, como tem mudado com frequência."

Scandelari, assim, discorda ainda da proposta do ministros Edson Fachin e André Mendonça, que determinaram a regulamentação da quantidade no Judiciário

Ainda, uma definição de quantidades ao fim do julgamento não significa que haverá uma anistia geral ou uma revisão automática de processos por tráfico de drogas, justamente pela presunção relativa.

"Será preciso revisar caso a caso e entender como a pessoa foi presa. Reabrir o processo, ver quantidades, o lugar da prisão, com que substâncias ela estava", diz Emilio, da Rede Reforma.

Para ele, o Brasil está atrasado em relação ao resto do mundo, discutindo a descriminalização e critérios quando outros já superaram essa questão ou foram direto à legalização.

Segundo Scandelari, o debate sobre drogas no Brasil é mais pertinente aos campos de políticas públicas e sociologia do que ao direito.

"Mas sempre acaba descambando para punir mais ou punir menos. Temos um cacoete na nossa sociedade de resolver tudo com cadeia. Na verdade, quando chega à cadeia, é sinal de que não foi resolvido."

No Congresso, o Senado se prepara para votar uma Proposta de Emenda à Constituição para criminalizar porte e posse de todos os tipos de drogas.


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