BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Saber se pode virar empregado de uma empresa privada ou atuar como consultor privado na mesma área em que fez carreira no serviço público ou ainda se tornar sócio de negócio privado.
Essas três questões encabeçam a lista de dúvidas quando servidores ou empregados públicos federais buscam informações com o intuito de migrar do governo para o setor privado, respeitando a lei 12.813/2013, também conhecidas como Lei de Conflito de Interesses.
Em julho, a lei completa dez anos, e a busca dos limites entre público e privado, retratados por essas consultas, é interpretada como um dos ganhos da legislação.
Nesse período, os trabalhadores teriam incorporado a preocupação em não transitar de qualquer jeito pela chamada porta giratória, o vai e vem de um setor para outro, e vice-versa, com vazamentos de informações privilegiadas, ganhos para indivíduos e suas empresas, em detrimento do interesse público.
"Da perspectiva das consultas, temos indicativos de que há preocupação em seguir a lei, o que é muito positivo", diz o ministro Vinícius Marques de Carvalho, da CGU (Controladoria Geral da União).
A CGU é um dos órgãos que aplica a lei. Mas ela divide a responsabilidade com a Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
A comissão é responsável por monitorar risco de conflito de interesse do topo da pirâmide do serviço federal, o que inclui trabalhadores de DAS 5 (Direção e Assessoramento Superior nível 5) para cima, bem como ministros, secretários, presidentes de estatais. A CGU cuida dos casos dos demais trabalhadores.
A avaliação, no entanto, é que alguns pontos da regulação precisam avançar. Num aspecto amplo, a lei, por exemplo, só abarca a esfera do Executivo. Não inclui Judiciário ou os estados. Dentro do que está no seu escopo, também há lacunas.
O ex-conselheiro da comissão Erick Vidigal afirma que a lei já construiu um bom legado, mas seria mais eficaz se o seu texto regulasse minimamente algumas questões relativas à comissão. Em 2020, ele renunciou ao cargo na comissão depois de questionar publicamente a falta de transparência dos trabalhos.
O mandado dos conselheiros, por exemplo, não está definido na lei, mas apenas no regimento. Assim, o presidente pode trocar os integrantes se julgar necessário. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acaba de trocar três conselheiros indicados por seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL).
Pelo aspecto politico, essa indefinição pode fragilizar os ocupantes do cargo numa discussão que desagrade o presidente da República e também abrir espaço para interferências nas decisões ou alinhamento entre a comissão e o Executivo.
Levantamento realizado pela Folha em 2021 indicou a existência desse risco. Mostrou que integrantes do Ministério da Economia, do Banco Central e dos bancos federais estavam conseguido um crescente número decisões favoráveis durante o governo Bolsonaro.
Em 2018 e 2019, as decisões pró-equipe econômica não passavam de 39% do total. Em 2019, o índice subiu para 73%, até chegar a 84% em 2020.
A lei também não define parâmetros de transparência para a atuação da comissão. Como, se e quando suas decisões serão divulgadas à sociedade dependem de quem ocupa a presidência do órgão. Não há controle externo sobre a distribuição dos processos.
Uma das críticas de Vidigal, antes de deixar o órgão, tratava justamente da indefinição sobre como se havia escolhido o relator do processo que avaliava a conduta do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.
A lei também deixa em aberto os critérios para a definição de quem deve ou não ter direito a quarentena remunerada de seis meses, explica Vidigal.
"Na prática, diversos agentes públicos passaram a ganhar férias remuneradas, em razão de decisões que reconheciam conflito de interesses em potencial. Houve casos de quarentena até para servidores públicos que retornavam para seus cargos, onde já deveriam manter o dever de sigilo."
Recentemente, também gerou debate a liberação para que ministros assumissem cargos em grandes companhias sem passar pela quarentena. O cargo de ministro é considerado um dos mais sensíveis, dado o volume de informações que podem acumular, e recomenda-se a aplicação da quarentena para eles.
Bruno Bianco, ex-advogado-geral da União, e Fábio Faria, ex-ministro das Comunicações, por exemplo aceitaram convite do BTG liberados da quarentena.
O banco atua em diferentes segmentos de negócio, inclusive fibra ótica, tema acompanhado por Faria no governo. Marcelo Sampaio, ex-ministro da Infraestrutura, vai para Vale, dona de ferrovias e portos, também sem quarentena.
Segundo Raquel Pimenta, professora da FGV Direito que pesquisa anticorrupção e conflito de interesse, a discussão da quarentena é um dos itens mais sensíveis no debate da ética pública.
"A construção de uma legislação sobre conflito de interesse é paulatina no Brasil, e ela trata de como entrar no serviço público, como desempenhar a função e também da saída", explica ele.
"Essa parte da saída é muito delicada porque é preciso achar um equilíbrio entre o trabalho na iniciativa privada, a liberdade de emprego e as restrições para preservar o interesse público. O equilíbrio é importante porque se for acertado faz com que o poder público consiga atrair gente vocacionada e competente."
Parte das funções das CGU também ainda não foram totalmente regulamentadas na lei, explica o ministro Carvalho.
"O debate sobre a definição de como os agentes se submetem à CGU é uma coisa ainda meio ampla. Isso nunca foi regulamentado. Não tem um decreto que estabelece como a CGU vai atuar. É um debate que precisa ser feito", diz ele.
Quem assume um cargo no governo federal do DAS 5 para cima, por exemplo, precisa fazer declaração de conflito de interesse e eventualmente até consultar a Comissão de Ética.
"É como se houvesse um controle prévio, mas ele fica restrito a um número limitado de pessoas. Todo o resto da Esplanada do Ministério fica sem controle prévio", diz Carvalho.
Também ainda há lacunas na gestão do cotidiano do trabalho, quando podem ocorrer inúmeras situações delicadas.
Outro exemplo: um servidor de carreira atua na ANM (Agência Nacional de Mineração) e o seu irmão consegue emprego numa mineradora regulada pela agência. O melhor seria que ele comunicasse o risco potencial. Mas não há como monitorar algo assim.
"De fato, é um controle difícil aqui em qualquer lugar do mundo, que é matéria de discussão até nas empresas privadas, que tem preocupação com o risco reputacional e, em alguns casos, com a corrupção que isso pode gerar", diz Carvalho.
"É por isso que há investimentos dos sistema de autodeclaração e consultas, para que as pessoas se sintam limitadas pelos valores que a lei quer transmitir."
Atualmente, as consultas sobre temas sensíveis podem ser feitas no SeCI (Sistema Eletrônico de Prevenção de Conflitos de Interesses).
Criado e monitorado pela CGU, ele é uma das ferramentas que foram instituídas para viabilizar a aplicação da lei. Devidamente organizadas, as consultas também servem de base de dados para medir como a lei avança.
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