BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A três meses do fim do ano, a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos na ditadura militar continua sem sair do papel.

Criada no governo Fernando Henrique Cardoso como forma de reconhecer vítimas do regime, localizar corpos desaparecidos e indenizar suas famílias, a comissão foi extinta no final do ano passado, no apagar das luzes do governo Jair Bolsonaro (PL), defensor dos militares na repressão.

Procurado, o governo Lula (PT) mantém a promessa de recriar o colegiado e reconduzir titulares que haviam sido dispensados por Bolsonaro, como mostrou reportagem da Folha de março. O que, até o momento, não ocorreu, apesar de ser uma pauta importante para a esquerda brasileira.

Segundo integrantes do governo, há preocupação em não criar uma nova crise com militares em torno de um tema que é considerado sensível por eles.

O ministro José Múcio (Defesa) tem acompanhado a recriação do colegiado e já se reuniu com Silvio Almeida (Direitos Humanos) para tratar do tema --haverá nova reunião nas próximas semanas. Familiares de vítimas já se queixaram ao governo da demora na recriação do colegiado.

O Ministério dos Direitos Humanos, sob o qual deve ficar a comissão, disse à reportagem que já encaminhou toda a documentação e a proposta de decreto para a recomposição da comissão para a Casa Civil. Além disso, disse que o orçamento do grupo será de R$ 1,1 milhão, ante R$ 300 mil na gestão Bolsonaro.

Mas os ministérios da Justiça e da Defesa também pediram para referendar a comissão, o que teria retardado mais um pouco a recriação. "O MDHC também se empenhou em garantir as condições orçamentárias", disse a pasta dos Direitos Humanos.

A militante Diva Santana, que integrava a comissão na época do seu desmantelamento, questiona as dificuldades e a demora para a recriação do órgão.

"Estamos enfrentando dificuldades para que essa comissão seja reeditada. Por quê? A lei existe, está aí, não acabaram com a lei. Para acabar com uma lei tem que passar pelo Congresso, ter discussão. Então, não tem peso nenhum, na minha opinião, você reeditar uma comissão que é da lei", afirma.

Irmã de Dinaleza Santana, uma desaparecida política, a militante afirma que a paralisação prejudica os trabalhos, além de prolongar a expectativa dos familiares, que não conseguem respostas sobre o paradeiro de seus entes.

"A gente vem enfrentando todas essas dificuldades, passa por governo autoritário, passa por governo que faz apologia a torturador, passa por governos democráticos, e continua sempre passando por essa dificuldade do não reconhecimento", diz.

Além da recriação da comissão, a militante espera que haja uma ação que resulte na abertura dos arquivos militares sobre o período da repressão.

A recriação da comissão ocorre ainda num momento em que o governo Lula busca pacificar e normalizar a relação com as Forças Armadas, após quatro anos de Bolsonaro.

Lula iniciou seu terceiro mandato com uma demissão do então comandante do Exército, após crise de confiança. Semanas antes, manifestantes golpistas que estavam acampados em frente a quarteis invadiram e depredaram a sede dos três Poderes, ampliando a tensão.

O tema da ditadura militar e, sobretudo, das vítimas do regime é sempre sensível aos fardados.

Na última gestão do colegiado, antes do desmonte no governo Bolsonaro, uma das principais missões era a de retificar atestados de óbito, incluindo como causa da morte "morte violenta causada por perseguição do Estado".

Foi justamente em uma dessas retificações, em 2019, que o então presidente resolveu desmontar o colegiado.

À época, no primeiro ano de governo, a comissão tinha determinado a correção do atestado de óbito de Fernando Santa Cruz, que desapareceu junto com o amigo Eduardo Collier Filho em 1974, depois de serem presos por agentes da repressão.

O objetivo da medida era que o atestado registrasse que Santa Cruz foi vítima da violência de Estado. Mas, como resposta, Bolsonaro trocou 4 dos 7 integrantes do grupo. Entrou, por exemplo, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, que é ligado a Damares Alves, hoje senadora pelo Republicanos-DF e ex-ministra de Bolsonaro.

Santa Cruz e Collier Filho fazem parte de uma lista de 243 desaparecidos políticos feita pela Comissão Nacional da Verdade. A busca pelo paradeiro dos corpos ainda não localizados tem várias frentes inconclusas --inclusive por entraves que antecedem a gestão Bolsonaro.

A procuradora federal Eugênia Gonzaga estava à frente dos trabalhos na época, e integrantes do governo Lula sinalizaram sua recondução ao cargo, após ter sido afastada em 2019.

A exemplo dela, outros integrantes daquela formação também devem ser reconduzidos. Com isso, a ideia, segundo interlocutores, é repor o que fora desfeito.

Quando reinstalada, os trabalhos da comissão devem dar sequência às retificações de atestados de óbito e continuar com os trabalhos na vala clandestina de Perus, descoberta na zona norte de São Paulo nos anos 1990.

O conjunto encontrado em Perus é composto por 1.049 caixas com ossadas, hoje sob os cuidados do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Unifesp, que capitaneia as pesquisas.

Quando Bolsonaro trocou a procuradora federal pelo aliado de Damares à frente do colegiado, esse foi praticamente o único trabalho que teve continuidade, porque o caso estava judicializado.

O colegiado deve ainda abrir frente para novos reconhecimentos, como de camponeses e de indígenas, até hoje não reconhecidos individualmente como vítimas do estado.


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