VIAMÃO, RS (FOLHAPRESS) - Trata-se de um dado de mais de 10 anos, mas ele ganhou projeção nacional quando, na sabatina do Jornal Nacional, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi questionado pela apresentadora Renata Vasconcellos sobre qual seria "o papel do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]" no governo dele.

"O MST é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. Você tem que visitar uma cooperativa do MST, Renata. Você vai ver que aquele MST de 20, 30 anos atrás não existe mais", disse Lula.

Na ocasião, o movimento chegou a visitar a sede da Globo para entregar uma cesta de produtos aos apresentadores, com destaque para os sacos de arroz da marca Terra Livre, do MST.

O MST não é apenas o maior produtor de arroz orgânico do Brasil, mas também da América Latina. Também é verdade que é praticamente o único.

Conforme o Irga (Instituto Riograndense do Arroz), órgão vinculado do Governo do Rio Grande do Sul que monitora a produção do grão, mais de 4.000 hectares da produção de arroz orgânico estão em assentamentos do MST, contra menos de 1.000 hectares dos demais produtores do estado, que concentra 70% da produção do grão no Brasil.

Outra verdade é que a produção de arroz orgânico é muito pequena, quase irrisória. No Rio Grande do Sul, os 5.000 hectares correspondem a 0,57% da produção dos mais de 865 mil hectares do grão no estado.

O dado, portanto, é menos superlativo do que Lula fez parecer, mas o MST valoriza sobretudo a segunda parte da fala do presidente.

O arroz orgânico serve hoje como cartão de visitas do movimento que tenta se posicionar mais como um grupo de produtores ecologicamente corretos do que de invasores de terras.

Quase a totalidade dos hectares dedicados ao arroz orgânico pelo MST são produzidos em seis municípios gaúchos onde, desde o final da década de 1980, famílias receberam terrenos via reforma agrária.

Destes, 1.600 hectares estão no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, município vizinho a Porto Alegre.

No assentamento batizado em homenagem ao herói indígena Sepé Tiaraju, o cultivo orgânico não foi exatamente uma escolha. Por serem assentados em uma APP (Área de Proteção Permanente), os ex-trabalhadores sem-terra não podem usar agrotóxicos.

"Já a escolha do arroz foi por causa do terreno. Como ele é alagado ao natural por causa da proximidade do rio Gravataí, plantar arroz fazia sentido", diz Diego Severo, 32, agricultor assentado no Filhos de Sepé desde 2012 e um dos coordenadores estaduais do MST.

Os assentados também são obrigados a preservar 25% do território onde foram instalados desde 1995 como mata nativa. No restante, os trabalhadores vivem em agrovilas e plantam nos arrozais, divididos em centenas de lotes explorados por cada uma das 376 famílias ali presentes.

A área de preservação pode ser ampliada graças a presença de dois animais silvestres no local, o cervo campeiro e o tuco-tuco, um pequeno roedor. Entre as safras e em outros territórios do assentamento, os trabalhadores criam gado de corte em pastagem natural, sem confinamento, e testam outras culturas, como a soja orgânica, desde 2022.

Conforme o agrônomo do MST Marco Dione dos Reis, 36, a produção do arroz orgânico enfrenta seus desafios e dilemas. O principal deles é desenvolver suas próprias sementes e fertilizantes, dado que mais de 97% das sementes de arroz comercializadas hoje contêm algum rastro de agrotóxico.

Em um lote experimental, o movimento testa diferentes insumos desenvolvidos por eles mesmos na Unidade de Produção de Bioinsumos Ana Primavesi, batizada em homenagem à engenheira agrônoma austríaca pioneira na agricultura orgânica no Brasil, morta em 2020.

Segundo os produtores, a presença de agrotóxicos é tão ostensiva que já houve o caso de safras do MST que perderam a certificação de orgânicos porque foram contaminadas pela pulverização de propriedades vizinhas, por aeronaves.

Outro problema é a "gourmetização" do produto. Pela produção ser pequena e o preço do arroz orgânico ser pelo menos 20% mais caro do que o convencional, podendo custar até o dobro do preço nas categorias mais caras, os produtores dizem se preocupar que eles passem a ser artigos de luxo e não atinjam populações mais pobres.

"Gostaríamos que a alimentação em geral fosse o mais orgânica possível, e não apenas a de quem pode pagar para ter acesso a uma comida mais saudável. Daí nossa luta para que inserir os orgânicos nas merendas escolares, por exemplo", diz Reis.

Mesmo que bem-intencionada, trata-se também de uma questão de sustentabilidade econômica. Conforme o MST, 65% da produção dos orgânicos é adquirida por governos que inseriram a alimentação nos seus programas de compra de alimentos para merendas e afins.

Em razão disso, os produtores do MST ainda se ressentem da pandemia, quando perderam a maioria da clientela e tiveram de comercializar o arroz abaixo do preço da produção.

Já a parte "gourmetizada" da produção vai para feiras de orgânicos ou para a rede de mercados Armazém do Campo, criada há seis anos pelo MST.

Ela começou 2023 com 24 lojas físicas, loja online e planos de expansão. Em 2021, foi inaugurada a unidade de Porto Alegre. Segundo Severo, é mais barato comercializar o produto em uma rede de lojas próprias do que "batalhar por 80 centímetros de uma prateleira do Carrefour".

Nos locais, além do arroz e de outros produtos orgânicos, é também possível comprar por R$ 30 o mais procurado dos produtos do MST. O símbolo máximo de que, como disse Lula, o movimento ?ao menos em parte da população? deixou de meter medo há bastante tempo.

"É o boné, claro. Eu não posso ir a Porto Alegre com ele sem que alguém peça o meu de presente", diz Severo.


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