SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A proposta de redução de penas a Jair Bolsonaro (PL) aprovada na Câmara dos Deputados na quarta-feira (10) cria exceção à regra sobre o tema e, por isso, pode ser contestada, na opinião de especialistas ouvidos pela Folha.
Eles falam em equívoco no projeto, que apresenta mudança no acúmulo de penas dos crimes antidemocráticos, e citam a possibilidade de veto pelo presidente Lula (PT) com base em argumentos jurídicos.
A proposta do relator Paulinho da Força (Solidariedade-SP) será avaliada agora no Senado, depois de ter sido aprovada na Câmara por 291 votos contra 148. O texto propõe uma nova regra para somar as penas dos crimes contra a democracia e prevê mudanças na progressão de regime para alguns crimes, deixando outros de fora.
Se aprovado, Bolsonaro poderia ficar menos tempo em regime fechado (entre 2 e 4 anos, contra uma estimativa no cenário de hoje entre 6 e 8 anos). Além disso, o total de 27 anos e 3 meses de condenação seria reduzido.
A condenação no STF (Supremo Tribunal Federal) é decorrente da somatória de cinco crimes, dos quais dois contra a democracia: tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, que rendeu ao político 6 anos e 6 meses de reclusão, e de golpe de Estado, com 8 anos e 2 meses.
Com o texto do Congresso, o total de anos do ex-presidente na prisão seria reduzido porque, no caso dos crimes antidemocráticos, seria aplicada somente a pena do que gerou mais tempo de reclusão (golpe de Estado), com acréscimo de um sexto até metade, segundo Lucas Miranda, mestre em direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Com isso, a pena total do político poderia ficar em cerca de 22 anos, no cenário mais brando.
O especialista explica que existem três formas de calcular a pena em contextos com mais de um crime. A primeira é por meio do concurso material, aplicado quando o réu pratica crimes distintos, com mais de uma ação. Nesse caso, somam-se as penas dos delitos. Foi assim que os ministros do STF enquadraram Bolsonaro nos crimes contra a democracia.
Outra hipótese é a de concurso formal, quando o réu pratica mais de um crime com uma única ação. "Imagina que eu jogo uma pedra, quebro o vidro do carro e ainda acerto o motorista. Com isso, pratico o crime de dano no carro e o crime de lesão corporal. É o mesmo ato, de lançamento da pedra, que me fez praticar os dois crimes", exemplifica Miranda.
Se, nesse cenário, houver vontades autônomas (intenção tanto de quebrar o carro quanto de machucar o motorista), também somam-se as penas, caso do chamado concurso formal impróprio.
Já no caso em que há só uma intenção (no exemplo, se o réu queria quebrar o vidro, mas lesionou alguém sem querer), aplica-se o concurso formal próprio, no qual se computa somente a pena do crime mais grave, com aumento de um sexto até a metade.
"O que o projeto prevê é aplicar o concurso formal próprio em todos os casos para os crimes contra o Estado democrático de Direito, tanto em ações distintas quanto em uma ação com desígnios autônomos", diz Miranda.
Assim, nos crimes contra a democracia, o julgador sempre teria que aplicar o crime mais grave, com aumento, e não somar os delitos.
Para Miranda, o texto é "equivocado, pois cria uma exceção à regra de aplicação de penas em casos em que há mais de um crime, mas de forma casuística, somente para os casos de crimes contra o Estado democrático de Direito, sem qualquer justificativa jurídica para isso".
Diego Nunes, professor de direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), entende que o projeto gera uma "razão clássica para veto do presidente da República".
Ele afirma que a aplicação do concurso formal próprio faz sentido para aqueles que foram condenados apenas pelo 8 de Janeiro, uma vez que estariam em um único contexto (o dia do ataque), desdobrado em vários crimes.
Não seria o caso, entretanto, da cúpula do golpe, que, segundo julgou o STF, cometeu atos desde 2021 com o propósito de abalar a democracia. "Nesse caso, a lei manda somar as penas", diz.
Nunes entende que o projeto "obriga o juiz a aplicar o contrário do que diz o Código Penal" e poderia gerar uma "chuva de ações" prevendo sua inconstitucionalidade, além de veto presidencial.
O especialista afirma também que as mudanças nas regras para progressão de regime "afetariam outros crimes, como coação no curso do processo, gerando um efeito cascata gigantesco em todo o sistema penal".
"Isso poderia ser considerado uma mudança legislativa ad hominem [ou seja, feita para alcançar uma pessoa específica] e, por isso, ser vetada pelo presidente ou ser razão para a interposição de uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] no STF, tendo em vista que fere a lógica de a lei ser geral, abstrata e impessoal."
Para Pierpaolo Cruz Bottini, advogado e professor de direito penal da USP, a mudança de progressão de regime proposta no projeto "perpetua uma aplicação desigual do direito penal, que existe no Brasil desde a época colonial".
"Aquele que comete o crime patrimonial tem o tratamento mais duro, desde a abordagem policial até a execução da pena, e aquele que comete os crimes tributários, de corrupção ou contra o Estado democrático de Direito tem tratamento mais benéfico."
Ele chama de atécnico o trecho que prevê uma regra específica para a acumulação de penas dos crimes antidemocráticos. "Há uma violação brutal do princípio de igualdade. Não há nenhuma razão lógica ou jurídica para se estabelecer essa exceção para os crimes contra o Estado de Direito."