BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), votou nesta segunda-feira (15) pela inconstitucionalidade de trecho da lei que instituiu um marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Na mesma manifestação, o relator apresentou a proposta de eventual projeto de lei sobre a matéria.
Em voto de 228 páginas apresentado em sessão do plenário virtual do Supremo (plataforma na qual os ministros depositam seus votos, sem debate) que vai até a quinta-feira (18), o ministro também tratou de vários pontos sobre o tema que foram discutidos em uma conciliação iniciada no ano passado.
Ele ainda propôs que os ministros fixem um prazo de dez anos para que a União conclua todos os processos de demarcação pendentes no país.
No início da tarde, ele foi acompanhado por Flávio Dino, com ressalvas.
O marco temporal é a tese segundo a qual os territórios indígenas devem ser reconhecidos de acordo com a ocupação deles no ano de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada.
Em 2023, o Supremo derrubou a tese do marco temporal, também em um momento de tensão entre Legislativo e Judiciário. Na época, o julgamento ficou em 9 a 2, sob a relatoria de Edson Fachin.
Em reação, o Congresso votou e aprovou um projeto de lei que voltou a instituir o marco. O texto aprovado no Legislativo foi questionado no STF, que voltou a debater o assunto. Sob a relatoria de Gilmar, o processo teve 23 reuniões entre partes e interessados.
Em seu voto desta segunda, Gilmar afirma que a lei aprovada pelo Congresso é desproporcional e não traz segurança jurídica ao impor o marco temporal de forma retroativa, e atinge comunidades que não têm documentação formal de ocupação.
"Nossa sociedade não pode conviver com chagas abertas séculos atrás que ainda dependem de solução nos dias de hoje, demandando espírito público, republicano e humano de todos os cidadãos brasileiros (indígenas e não indígenas) e principalmente de todos os Poderes para compreender que precisamos escolher outras salvaguardas mínimas para conduzir o debate sobre o conflito no campo, sem que haja a necessidade de fixação de marco temporal", diz o voto.
Ele também tratou de outros aspectos, como o exercício de atividades econômicas nas terras indígenas, previstos na lei de 2023.
A lei "autoriza o exercício de atividades econômicas em terras indígenas pela própria comunidade, inclusive turismo, desde que os benefícios alcancem toda a coletividade e que a posse da terra seja preservada".
No voto, Gilmar diz que as atividades podem ser exercidas pelos próprios indígenas, de acordo com seus usos, costumes e tradições, "sendo admitida a celebração de contratos com não indígenas, desde que respeitada a autodeterminação das comunidades".
A votação virtual do marco temporal no STF foi marcada após o Senado aprovar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que institui o modelo do marco temporal para demarcações, um acirramento da crise entre os Poderes. O texto ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados.
Flávio Dino afirmou que a proposta de projeto de lei, nascida da comissão especial criada por Gilmar, deve ser enviada às presidências da Câmara e do Senado.
"Com efeito, não há dúvida quanto à legitimidade da instituição e do funcionamento da Comissão Especial, no âmbito de um processo estrutural em tramitação no STF, posto que, se uma ou outra entidade resolve não atender ao convite do Poder Judiciário, tal recusa não macula a ampla representatividade do debate", disse.
A respeito da votação do Senado, sem citar diretamente a sessão da última semana na Casa, Dino afirmou que nem mesmo uma proposta de emenda poderia fragilizar direitos indígenas como os apontados pela tese definida pelo Supremo no julgamento de 2023.
"Neste passo, inclusive propostas de emenda constitucional que pretendam introduzir tal limitação são materialmente inconstitucionais, pois atingem o núcleo essencial dos direitos fundamentais, o que é vedado pelo constituinte originário. O Poder Legislativo não pode, sob qualquer pretexto, suprimir ou reduzir direitos assegurados aos povos indígenas, sob pena de ofensa aos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito", disse.
Mas o ministro entende que há mais pontos de inconstitucionalidade do que a análise do relator. Em um deles, o ministro afirma que a previsão de que o órgão gestor da unidade de conservação é quem tem resposnsabilidade e resolver questões sobre o uso das terras. Para Dino, cabe à comunidade dar a palavra final sobre seus interesses e sobre a normatização da presença de visitantes e pesquisadores, por exemplo.
Segundo ele, é possível a implementação de atividades econômicas nos territórios indígenas, mas com os direitos desses povos garantidos e preservados.
"Apenas é imprescindível a observância das regras, conforme apontado, e respeitar os direitos indígenas. Entre estes se inclui o de participar ou não das atividades econômicas. O que não se admite é que os povos indígenas sejam ignorados no processo decisório, em uma espécie de 'atropelo' via fatos consumados ou que sejam participantes subalternos de projetos privados em seus territórios", afirmou.
Dino disse que há mais de 30 anos se espera para a efetivação das demarcações. Além de manter uma situação de insegurança a essas populações, avaliou o ministro, produz efeitos ainda mais graves.
"Tal omissão compromete a segurança jurídica, além de fragilizar a proteção de direitos fundamentais. Tem o potencial de inviabilizar a própria existência das comunidades indígenas, pois estas são indissociavelmente ligadas ao território", disse.