Na data em que a trajetória de Zumbi de Palmares é lembrada e celebrada como exemplo de resistência e luta, a contribuição que a população negra tem na construção da cidade de Juiz de Fora pode ganhar um novo marco. Nesta segunda-feira (20), o Projeto de Lei 207 de 2022, que busca instituir o feriado municipal da Consciência Negra no município será votado durante a 3ª Reunião Ordinária do 11º Período Legislativo, marcada para as 17h30. O tradicional ato antirracista que ocorre no 20 de novembro, esse ano, tem como pauta a sensibilização da população e da Câmara, em prol da necessidade de tornar a data um feriado na cidade, em reconhecimento à dívida histórica com todos os negros e negras que sofrem as consequências da escravidão.
A história da mobilização em torno da temática vem da criação do Movimento Negro Unificado (MNU) no país. Hoje, como ressaltou o coordenador do MNU em Juiz de Fora e Zona da Mata, Paulo Azarias, que também é presidente do Conselho Municipal de Igualdade Racial, em um vídeo de convocação da população para o ato, resguardar a data é um dos meios de garantir a consciência e os direitos da população negra. “É preciso ir para as ruas, manifestar e declarar apoio ao feriado”, destaca. Ele pontua que hoje, mais da metade do país tem o dia 20 de novembro como um feriado.
O ato deste ano reúne diferentes organizações e movimentos negros, na escadaria da Câmara, marcado para as 17h, pouco antes do início da reunião em que o legislativo votará o feriado. A manifestação se une à mobilização nacional. Além do feriado, estão em pauta: o fim da violência policial e de Estado contra o povo negro; o fim do racismo e do racismo religioso; a titulação dos territórios quilombolas no Brasil; aprovação do estatuto municipal de igualdade racial; o fortalecimento dos órgãos de combate ao trabalho ánalogo a escravidão; justiça por Mãe Bernadete; justiça por Marielle e Anderson. Diversos coletivos e partidos assinam as atividades do comitê, entre eles Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe, União de Negros pela Liberdade (Unegro), Movimento Negro Unificado (MNU), Afronte, Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, Associação Cultural Bloco Afro Ìlù Àse Muvuka, Associação Cultural CineFanon, Instituto Feijão de Ogun, Sindicato dos Professores de Juiz de Fora (Sinpro/JF), Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (SindUTE/MG), entre outras. Um dos instrumentos de luta mobilizados é o abaixo-assinado disponível para assinaturas no centro da cidade, em um banquinha montada no Calçadão da Halfeld. Também foi distribuído em diversos bairros e agendas. Pode ainda ser preenchido de forma online, através do link.
A discussão sobre o feriado na cidade ocorre desde 2015, quando o reconhecimento da data foi proposto pelo então vereador Roberto Cupolilo (PT) -que atua hoje como deputado estadual. Embora a proposta tenha sido aprovada pelo legislativo e pelo executivo, a Justiça impediu que a data se tornasse feriado, por meio da alegação de inconstitucionalidade feita pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) à época.
Com o entendimento do Supremo Tribunal Federal que desconsiderou a tese de inconstitucionalidade por vício, tomado em 2022. Cidades como São Paulo instituíram o feriado para a data. Na justificativa, a importância do marco como uma forma de recordar e lutar contras as desumanidades e injustiças históricas e ainda presentes na sociedade foram destacadas e voltam a tramitar na Câmara de Juiz de Fora, por meio do Projeto de Lei de autoria da vereadora Cida Oliveira (PT).
Longa espera pelo reconhecimento
O Portal Acessa.com entrevistou a historiadora Dalila Varela Singulane, doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que se debruça em sua pesquisa sobre a relação entre o patrimônio e o racismo.
ACESSA. COM: O seu trabalho de pesquisa tem como fio condutor o patrimônio cultural e o racismo. A presença e a contribuição da população negra de Juiz de Fora estão em todos os territórios da cidade. Que fatores estão envolvidos no silenciamento dessa presença na construção da cidade?
-Dalila Varela: O silenciamento sistemático da população negra juiz-forana é fruto, fundamentalmente, do racismo estrutural em que foi fundada a nação brasileira. Para um maior entendimento sobre essa afirmação é necessário retomar a história. Na época do surgimento do município de Juiz de Fora já estava em voga o que hoje compreendemos como racismo científico que, em suma, era uma corrente de estudos que acreditava que era possível determinar a partir de traços físicos e culturais os defeitos e qualidades dos seres humanos. Criada por intelectuais brancos europeus, essa teoria chegou à conclusão que pessoas de pele branca e nascidas na Europa eram propensas a genialidade, liderança, entre outras características positivas; enquanto que pessoas de pele não-branca, sobretudo, de cor preta estavam desde o nascimento propensas ao crime e comportamentos lascivos. Vale ressaltar que essa teoria foi uma sofisticação, por meio da ciência, de diversas outras que foram engendradas desde o século XVI para justificar a escravização e todo tipo de violência colonial nos territórios invadidos pelos europeus.
Assim, ao longo de todo o século XIX, esse tipo de pensamento guiava não só estudiosos, mas também os políticos. Logo, ao aplicar o chamado darwinismo social, por muito tempo acreditou-se que o Brasil estaria fadado ao fracasso tendo em vista que era notável que a população brasileira era majoritariamente não branca. Para corrigir o problema que acreditam ter, os intelectuais e governantes empreenderam políticas de branqueamento da população, que se deu pelo financiamento da imigração europeia para o Brasil, como também pelo apagamento de qualquer resquício da história que colocasse o negro como personagem importante na construção da nação, afinal para os homens daquele tempo, admitir que a população negra e indígena era valorosa à nação, era contrariar suas próprias convicções de sustentação e manutenção do poder.
Dessa forma, mesmo a população negra sendo numericamente maior, era importante ressaltar apenas os indivíduos e grupos brancos que eram considerados o topo dessa pirâmide social. Devido a isso que hoje podemos conhecer com muito mais facilidade as heranças culturais legadas pelos colonos germânicos e italianos em Juiz de Fora do que as da população negra, mesmo que essa última tenha participado ativamente da construção e desenvolvimento do município. Não somente isso, a cidade sempre fez questão de exaltar os escravocratas, como é o caso de Halfeld. Assim, apesar de pouco difundido é sempre importante ressaltar que se Juiz de Fora se industrializou e se urbanizou a ponto de ganhar o apelido de "Manchester Mineira" foi por conta do capital acumulado das lavouras de café que utilizavam a mão-de-obra negra escravizada. Ao longo de toda a sua história foram as mãos negras que construíram a cidade que se lembra apenas do seu passado branco. Como intitulei o capítulo da minha dissertação de mestrado em que falo sobre a história de Juiz de Fora, a Princesinha de Minas é negra.
ACESSA.COM: Hoje temos grupos que se dedicam a contar as histórias que, por conta do racismo, foram retiradas de espaços importantes como livros didáticos e materiais de estudo. Exemplifico esse tipo de atividade como a Caminhada Negra Juiz de Fora promovida pelo Coletivo Damata Cultural. Qual é a relevância desse tipo de pesquisa e de ação para a população? O que ainda é necessário avançar, para que se tenha um acesso mais amplo e mais facilitado da população como um todo à história da população negra do nosso município?
Ações como a Caminhada Negra são essenciais para o resgate da história e enfrentamento ao racismo da nossa sociedade. Conhecer os lugares de memória e afetividade que guardam as trajetórias da população negra é, na verdade, conhecer a história da maior parte da nossa população, as personalidades e eventos que realmente são parte da história de quem trabalha, sustenta e desenvolve Juiz de Fora e o Brasil desde sua fundação. A iniciativa contribui com a solidificação da nossa democracia, na qual toda a população tem direito a sua história, memória e cultura.
Assim, para avançarmos nesse sentido, precisamos, primeiramente, desvelar o racismo presente em nosso cotidiano, pois ao longo da construção da nação brasileira o que se fez foi mascarar o racismo e sua inerente violência - que a cada uma hora mata quatro jovens negros, atualmente. A negação do racismo criou o mito que vivemos em uma democracia racial onde todos têm as mesmas oportunidades, contudo, o que realmente se tem é uma dívida histórica com a população preta e indígena que continua morrendo por conta da vulnerabilidade em que foi colocada ao longo da história do Brasil, impedindo seu acesso aos direitos mais básicos para se viver, como saúde, alimentação e educação. No momento em que a reparação histórica a esses povos for inegociável e inquestionável, acredito que começaremos a dar passos largos em direção a uma sociedade antirracista e igualitária.
ACESSA.COM: Não dá para pensar a produção cultural da cidade sem falar e sem valorizar a intelectualidade e as tecnologias da população negra. O que falta para que toda essa rica produção de sentidos e de subjetividades seja devidamente reconhecida, creditada e ganhe a notoriedade e a celebração que ela merece?
Dalila Varela: Precisamos de mais investimento do poder público para acesso e difusão de tudo que é produzido, com recursos e espaços dedicados à população negra. Pensando em mecanismos já aplicados, podemos citar a renovação da lei de cotas nas instituições de ensino, que foi recentemente aprovada é um dos caminhos que mais tem produzido resultados positivos nesse sentido. Precisamos ainda, por exemplo, que a Lei n.10.696/2003, que torna obrigatória o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, seja realmente aplicada das redes de ensino, pois somente a educação pode construir um futuro sem discriminação. Precisamos ainda garantir que a população preta e indígena se veja representada nos museus, universidades, instituições e instâncias de poder, por isso também a última grande campanha para uma ministra negra no Supremo Tribunal Federal.
ACESSA.COM: Os movimentos negros vêm sistematicamente reiterando as ações de preservação e resistência da cultura negra da cidade. Qual é o papel e a importância dessa movimentação na preservação do patrimônio dessa coletividade? Como essa atuação pode alterar a forma como vamos olhar para a nossa história no futuro? É possível pensar em uma sociedade juiz-forana com Consciência Negra?
Dalila Varela: As ações dos movimentos negros da cidade são fundamentais não só para valorização das heranças culturais, mas também no combate a manifestações abertamente racistas, como era o caso do bloco carnavalesco Domésticas de Luxo, indicado a ser patrimônio juiz-forano, e que praticava “blackface” pelas ruas da cidade desde a década de 1950. Isso nos mostra que é preciso não só valorizar a cultura negra, mas combater cotidianamente práticas de racismo recreativo que se reproduzem com muita facilidade em nossa sociedade.
Juiz de Fora é pioneira na preservação do patrimônio, porém, se analisado de perto, o patrimônio juiz-forano é a memória coletiva dos grupos brancos e corrobora com o racismo e apagamento da população negra, que conta apenas com um bem cultural, num universo de quase duzentos bens protegidos, que diz objetivamente de sua história: o Batuque Afro-Brasileiro de Nelson Silva.
Refletir sobre o patrimônio cultural nesse contexto é parte importante do processo, pois ele reflete imaginários e nossa memória coletiva local. A medida que avançamos com pautas como do combate ao racismo e valorização da memória negra, o patrimônio é também um importante aliado nas ações educativas e difusão das manifestações culturais. O patrimônio deve ser, hoje, reflexo da sociedade democrática que lutamos tanto para ter, logo, tem o dever de ser antirracista e buscar por reparações históricas.
Por isso, acreditamos que a aprovação do feriado de 20 de novembro, em memória de Zumbi dos Palmares, o dia da Consciência Negra, será um importante passo para mudança desse cenário em que a única memória celebrada é a dos colonizadores e seus agentes. Isso porque uma data comemorativa como essa suscita a reflexão sobre a representatividade negra, indo muito além de apenas conhecer a história apenas pela face da escravização, o dia da Consciência Negra é um momento para valorizar e difundir a resistência, luta e as trajetórias de pessoas negras e suas realizações em diferentes contextos históricos.
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Consciência Negra | feriado
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