Às margens da Terra do Nunca
Buscando compreender as tramas do brincar
Começos de primavera. Em baixo da mangueira da escola as crianças brincam com a corda, elástico, bolinhas de gude e com um baú de fantasias de todo jeito, de todo tamanho. Elas todas correm, rodopiam, pipocam feito passarinho. De repente me detenho na brincadeira de dois meninos. Leonardo e Walace dão início a um enredo. Pelos seus olhos, movimentos e falas, pode se perceber que já estão quase no "outro mundo". Walace então convida Leonardo: "Agora nós era pirata, tá?" e o Leonardo grita "Vamos, amigo!". Pronto, está feito o pacto, estabelecido o acordo. Estão dentro, são mesmo piratas, já é muito tênue o limite entre o real e o imaginado. E então, no meio de tantas crianças, aqueles dois meninos, aqueles dois piratas, ganharam toda a minha atenção. Pude acompanhar o caminho que eles percorreram até conseguirem adentrar na fantasia de modo tão intenso. E talvez porque fossem piratas, e também meninos, me lembrei de uma passagem do livro de Peter Pan que tão bem ilustra o que vive dentro das crianças.
Mas eles (os médicos) nunca se meteram a desenhar a mente de uma criança, não só porque é muito confusa, mas porque ela fica girando sem parar. É cheia de linhas em zigue-zague, parecidas com os gráficos de temperatura. Provavelmente estas linhas são estradas da ilha. Ah, sim, porque a Terra do Nunca é sempre, mais ou menos uma ilha, com manchas surpreendentes de coral aqui e ali, com recifes de coral e embarcações cheias de mastros se fazendo ao largo, com selvagens e covis solitários, com gnomos que quase sempre são alfaiates, e com cavernas por onde correm rios, com príncipes que têm seis irmãos mais velhos, e uma cabana que está caindo aos pedaços, e uma velha muito velha de nariz torto. (James Barrie – autor de Peter Pan)
Foi então que veio a questão: Como foi que estes dois meninos conseguiram chegar lá? Como foi que adentraram a Terra do Nunca? Penso que o brincar das crianças é resultado de vários elementos, elementos que alimentam uma teia que vai se construindo aos poucos, devagarzinho, mas intensamente. Foi a partir deste pensamento que surgiu o interesse de buscar compreender qual o solo fértil, qual o cenário ideal para que este brincar livre possa se desenvolver plenamente. Quando digo cenário estou me referindo aos brinquedos, os tipos de materiais (se da natureza, se de plástico ou outro material sintético), aos espaços, aos tempos disponíveis, ao tipo de intervenção do adulto, à natureza das imagens a que estas crianças são expostas, aos encontros com as outras crianças. Enfim, buscar descobrir de que maneira estes elementos realmente interferem na qualidade do brincar das crianças.
As crianças têm uma plasticidade muito grande, uma capacidade de transformação/criação/imitação incrivelmente amplas. São capazes de reorganizarem o real. Os conflitos, as imperfeições da vida são ajeitadas ao seu modo, de acordo com uma lógica própria. E acredito que este exercício contínuo de imaginação seja de extrema importância para o desenvolvimento global do indivíduo, nas suas capacidades de pensar, sentir e agir no mundo. A capacidade das crianças – ou do ser humano- fazer uso dos símbolos está estritamente ligada à sua evolução. O universo simbólico é que possibilita o fazer artístico, o pensamento filosófico, a curiosidade científica, e suas origens estão na brincadeira infantil.
Então podemos pensar de que modo o educador pode contribuir para que este brincar possa se expressar em toda sua potência, de que modo podemos nos tornar parceiros das crianças nesta aventura. É uma questão que deve viver dentro nós, educadores, se temos um real compromisso com a infância. Pensando nesta questão, acredito que, talvez, o primeiro passo para que possamos tatear o universo brincante seja deixarmos de buscar, logo de início, objetivos e leis pedagógicas e psicológicas para justificar o tempo da liberdade e da brincadeira, e que alarguemos o nosso olhar até lá onde estão as crianças. Basta olhar mais atentamente para os pequenos, despidos da nossa roupagem de educadores e nos aproximando dos poetas e dos palhaços, para podermos ver claramente a profundidade de entrega das crianças e a seriedade com que experienciam cada brinquedo. Quando o educador se propõe a ser parceiro da criança, a se tornar ele também brincante, um artesão de fantasias, é fundamental que ele seja capaz de propiciar o ambiente e os tempos necessários para que o brincar livre floresça. Quando falo aqui de um ambiente ideal me refiro aos cenários, aos objetos e ao universo simbólico que sejam capazes de possibilitarem um exercício mais pleno da imaginação. Nesse sentido os brinquedos simples, inacabados, feitos das sobras e dos restos permitem a quem brinca com eles a possibilidade de desvendá-lo, ressignificá-lo, pois é um objeto que possui inúmeros significados que não são óbvios e nem estão evidentes. Vendo as crianças nos seus brinquedos, é importante que dentro de nós, educadores, um desejo comece a aflorar. Vontade de buscar o mapa deste caminho, este caminho sem propósito, sem finalidade nem destino certo que as crianças traçam até este mundo paralelo da fantasia, até desembarcarem na Terra do Nunca.
Professora, cantora e pesquisadora das Culturas da Infância e tradições populares
Trecho do artigo Buscando compreender as tramas do brincar
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