Entrevista com o maestro André Pires
Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?
André Pires: Ela veio na verdade antes de eu nascer. Minha mãe era professora de acordeon e, claro, eu estava na barriga dela e ouvia música o tempo todo, não só os alunos tocando, mas também o acordeon da minha mãe. Costumo dizer que quando ela me deu à luz ela também me deu ao som. Com dois anos ganhei o meu primeiro acordeon e brincava com o instrumento. Com quatro, pisei pela primeira vez num palco, solando Jambalaia e Serenô da madrugada. Há um ano meu neto Miguel ganhou seu primeiro acordeon, também aos dois anos de idade...
Daniela Aragão: Uma memória já uterina. Você traça todo um percurso pela música que foi se tornar seu meio de vida, sua profissão. Você é um pesquisador da música, um professor. Além do acordeon há o piano também, não é?
André Pires: Sim, e ainda o órgão, a regência... O piano entrou lá em casa quando eu tinha onze anos. Era um instrumento em péssimas condições, um Pleyel daqueles antigões, de cauda. Comecei a brincar com ele e tomar aulas com a minha mãe, que também dava aulas de piano. Aos doze anos terminei o curso de acordeon na academia Mascarenhas e fiz o vestibular para o curso técnico de piano da Escola de Música da UFRJ. Foi quando substituí o acordeon pelo piano.
Daniela Aragão: É interessante, acho que há uma geração anterior à sua que começou pelo acordeon e partiu em seguida para o piano. O Cristovão Bastos passou pelo acordeon, João Donato também.
André Pires: É verdade. Nessa transição, durante algum tempo, o acordeon ficou como um instrumento ancilar, histórico em minha vida, mas que marcou fundo, e para sempre, a minha formação musical. Por exemplo: o próprio nome dele, acordeon, indica um instrumento cuja base é o acorde, a harmonia. Você aperta um botão na mão esquerda, é o acorde maior. Mais atrás é o acorde menor. O botão seguinte é o acorde de sétima da dominante. Toda a estrutura dele é de base harmônica. Quando você sobe um degrau nos baixos da mão esquerda você sai da tônica para a dominante, e descendo a mão você deixa a tônica e chega na subdominante. Essa tríade, a relação importantíssima entre o primeiro grau (a tônica), o quarto grau (a subdominante), e o quinto grau (a dominante), eu nem sei quando foi que entrou na minha cabeça. Mas entrou com uma idade muito pequena! Isso explica a facilidade enorme que tive mais tarde nos estudos teóricos de harmonia, porque a percepção dos encadeamentos harmônicos tinha sido adquirida na prática, na escola genial do acordeon. Como abordei o instrumento desde muito cedo, essa percepção se tornou quase uma segunda natureza. Após os doze anos o acordeon pareceu ter ficado no ostracismo da minha vida profissional, mas foi um falso ostracismo, porque ele estava presente o tempo quando eu tocava piano ou órgão, quando ouvia música, regia coro ou orquestra, fazia arranjos, compunha... A cada momento de minha trajetória o acordeon esteve subjazendo.
Daniela Aragão: Você tem ouvido absoluto?
André Pires: Tenho. Eu não descobri (risos), foi minha mãe que descobriu. Eu reconhecia o som de uma buzina: “essa buzina toca dó”. Ela ia conferir e era mesmo. Para mim isso era a coisa mais normal do mundo, achava que todo o mundo era assim.
Daniela Aragão: É muito raro não?
André Pires: Não é tão raro não. Nem todo o mundo é assim, mas é menos raro do que a gente imagina. Pra você ter uma ideia, quando eu regia o Coral da UFJF, cada naipe tinha um coralista ou até dois com ouvido absoluto. Eu ia passar uma música e, antes de ter sido dado os tons de cada naipe, aquelas figuras já cantavam as notas na altura correta. Quer dizer, seria muita loucura achar que ocorreu um fenômeno, acreditar que todas as pessoas que possuem ouvido absoluto em Juiz de Fora foram parar no coral da Universidade (risos).
Daniela Aragão: Interessante, pois costumam dizer que é muito raro. Quem eu sempre soube que tinha ouvido absoluto era a pianista Dona Aparecida Costa.
André Pires: No coral eu descobri que a minha filha Roberta também tinha, ela já cantava o tom dos contraltos antes que ele fosse dado por mim. Isso não é uma coisa tão rara. Na verdade essa denominação ouvido absoluto é horrível, muito mal encontrada. Se você observar, eu uso um aparelho auditivo no ouvido direito e outro no esquerdo. Portanto, sofro de uma certa surdez, ouço menos bem que o normal das pessoas, aquém do normo-ouvinte, como se diz. Pra corrigir essa deficiência eu uso um aparelho que aumenta a intensidade do som que eu escuto, pra que eu possa ouvir legal. Como quem usa óculos para corrigir problemas da visão. Então, que absoluteza é essa do meu ouvido? Acontece que tenho uma escuta diferenciada da maioria das pessoas por que possuo a memória das alturas. Ao ouvir um som que tem aproximadamente 440 ou 442 hertz, ouço automaticamente o nome da nota lá, não necessito de um diapasão para me dizer isso, tenho esse som na cabeça, guardo essa memória. Claro que eu não conto os 440 ciclos (risos), simplesmente reconheço o lá do diapasão. Eu escuto ou emito esse som sem precisar de uma ferramenta instrumental.
Daniela Aragão: O que é raro nos que possuem esse tal ouvido absoluto é a capacidade de identificar qualquer som. Isso que é o grande primor do ouvido absoluto.
André Pires: Sim, mas o nome deveria ser outro. Ao invés de dizer “eu tenho ouvido absoluto”, deveríamos dizer “eu tenho memória das alturas”. Vamos comparar alguém que enxerga as cores e alguém que seja daltônico. Você não diz, de quem reconhece as cores, que ele tem “visão absoluta”. O daltônico pode até ter uma visão muito melhor do que alguém que enxerga as cores, mas é míope ou hipermétrope e por isso tem que ficar usando óculos: para distinguir melhor o desenho das formas. A expressão ouvido absoluto dá uma ideia de que seja uma coisa extraordinária, algo maior e mais abrangente do que aquilo que propriamente é. Quem possui ouvido absoluto apenas guarda a memória das alturas. Por exemplo, os trens aqui em Juiz de Fora apitam quando estão próximos ao bairro Mariano Procópio, e a gente ouve daqui de casa. É sempre um acorde acorde perfeito maior na segunda inversão, algo oscilante entre o tom de dó maior e o de si maior. Mais pro lado do tom de dó que do tom de si: sol, dó, mi (ou fá sustenido, si, ré sustenido). É uma coisa situada numa afinação entre o dó maior e o si maior, mais caminhando pro lado do dó. Se eu tocar o acorde de dó maior junto com o apito, ao piano, você pode pensar que está desafinado, mas não errado... Ouvir o apito do trem, ou um latido de cachorro, e reconhecer a altura daquele som que está sendo emitido, absolutamente não é ouvido absoluto. É memória das alturas. Mas não sou dono da língua, e quem seria eu para ter a intenção de muda-la?
Daniela Aragão: E na UFRJ você fez o curso de música?
André Pires: Sim. Mas não só lá. Na UFRJ eu fiz o técnico, depois graduação e aí dei uma parada. Mais tarde fiz o mestrado também lá. Dei uma interrompida de novo, e então fui fazer o doutorado na Unirio. Sempre na área da música. A graduação foi em Piano, o mestrado foi em Instrumentos de Teclado e o doutorado em Práticas Interpretativas (ou Performance).
Fiz ainda nesse meio tempo um curso de especialização em órgão de tubos na Alemanha, em 1980 e 81. Durante três anos, após ter voltado da Alemanha, trabalhei no órgão de Tiradentes, e também no de Mariana. Esse período em que trabalhei enquanto organista foi um episódico. O órgão também foi “a outra” ou “o outro” na minha vida, sempre fui mesmo casado com o piano, ainda que meio infiel... Minha intimidade afetiva e emocional era com o piano. Óbvio que tenho um carinho pelo acordeon, que toco até hoje. Há festas da família e amigos, aqui em casa, que em determinado momento deixo o piano e pego o acordeon. Nesses momentos eu estou mais à vontade no meu antigo instrumento, por ele ter mais a ver com o tipo de repertório que está sendo cantado e dançado. E sempre tem aquela hora em que se junta tudo, no piano de armário tem duas pessoas tocando a quatro mãos, no piano de cauda outras duas, dois ou três acordeonistas dialogando com o piano, aos quais também se somam vários percussionistas que enfatizam os ritmos tocados. Esta soma resulta numa espécie de orgasmo coletivo em que toda a família, e amigos, tocam. Nessas horas também, eu fatalmente pego o acordeon e cedo o piano a outros.
Daniela Aragão: Você foi se inclinando para regência.
André Pires: Na verdade o regente é um intérprete, está no campo da interpretação. Ele é um intérprete cujos instrumentos são as vozes de um coral ou os instrumentistas de uma orquestra. Um violinista, um violoncelista, um soprano, um contralto cedem gentilmente seus instrumentos ou vozes ao maestro, que os toca. Ele pode encontrar instrumentos, entre aspas, de menos boa ou de melhor qualidade. Instrumentos que respondam bem, ou não, à sua direção. O regente é um intérprete tanto quanto um pianista, um organista, uma violinista, um flautista ou uma cantora.
Quando trabalhei regência, foram apenas dezesseis horas com o John Neschling, um superprofessor. Tive com ele oito aulas de duas horas, eu já estava como organista em Tiradentes e ia ao Rio para ter essas aulas com ele. Em Tiradentes fundei um coral chamado Manoel Dias de Oliveira, compositor tiradentino do século 18 que era então desconhecido fora do ambiente São João del-Rei/Prados/Tiradentes. Conheci partituras compostas por ele e quis montar um coral, já que ele escreveu muito para coro a capella. Para órgão, só uma obra, acompanhando coro... Fiz uma proposta à empresa alemã que havia patrocinado a restauração do órgão do século 18 da Matriz de Santo Antônio, e que também havia concedido a mim a bolsa de estudos em Erlangen-Nürnberg (a Kraftwerk Union). A proposta foi aceita. Eles ofereceram meio salário mínimo a cada coralista e com isso consegui formar um coral misto, mulheres e homens, para ressuscitar as obras do Manoel Dias de Oliveira. Essa foi minha primeira experiência enquanto regente.
Na primeira convocação para participar do Coral Manoel Dias de Oliveira só mulheres atenderam a chamada, porque “homem não canta”. Ele toca um instrumento, ele compõe, mas não canta... Isso revela o pensamento preconceituoso naquela Tiradentes de 1976. Vieram as mulheres e talvez dois ou três gatos pingados de homem. Mas quando fiz a segunda convocação, já com a proposta de meio salário mínimo aprovada pela KWU (Kraftwerk Union), os homens vieram. Pois tinha gente que trabalhava oito horas por dia por menos de um salário mensal, naquela época... De repente eu estava com um coro de trinta e quatro vozes! Gravamos até um LP com o repertório retirado das partituras engavetadas havia quase duzentos anos.
Foi por causa do Manoel Dias de Oliveira que fui estudar regência, já que ia trabalhar com coro. Não queria só ficar balangando os braços pra lá e pra cá. O maestro John Neschling tinha acabado de chegar da Áustria e estava empolgadíssimo. Queria que eu regesse o Requiem de Mozart e a Sinfonia Heróica de Bethoven, cujas partituras cheguei a comprar e começar a ler. Ele desejava que eu me tornasse um regente. Só que a regência na minha vida era, também, “a outra”, o meu barato não era exatamente esse. Embora eu estivesse inteiro quando regia, não estava disposto a trocar as horas de estudo do repertório pianístico pelas horas de estudo do repertório orquestral, como o John me propunha. Por isso fiquei apenas nas primeiras 16 horas de aula...
Daniela Aragão: Era uma riqueza musical infindável, suponho. No entanto foi preciso estabelecer sua vertente prioritária.
André Pires: Eu já tinha as horas de estudo ao órgão e estava ganhando inclusive o meu salário como organista. Já estava dividido entre o órgão e o piano. Por isso, depois daquelas oito aulas duplas de regência tive que pisar no breque, porque não caberia na minha vida o que estava na expectativa do meu professor. O que faço como regente é a música que aprendi no acordeon, no piano, no órgão e que eu aplico à orquestra ou ao coro. O conhecimento necessário para a montagem de uma arquitetura musical - e o exercício da fantasia - são aplicáveis indistintamente a qualquer instrumento, ao canto ou à regência. Esse conhecimento não foi apreendido por mim nas aulas de regência. Como aluno de regência fiz a aquisição de uma técnica básica de linguagem gestual, para uma melhor comunicação visual entre o corpo que estivesse sob a minha direção e eu, fosse coro ou orquestra.
Daniela Aragão: Antes da abertura dos cursos de Graduação em Música, você era o único professor com disciplinas isoladas na área musical e com a empreitada de dar essas aulas dentro de uma universidade, no curso de Artes. Como foi essa experiência pra você?
André Pires: Em 1984 minha família e eu trocamos Tiradentes por Juiz de Fora, depois de eu ter sido aprovado em concurso público. Havia duas disciplinas no curso de artes, Musicalização Básica I e II (que depois veio a se chamar Evolução da Linguagem Musical). O professor Hamilton Fernandes, que dava essas duas disciplinas, havia se aposentado. Ambas as disciplinas eram obrigatórias para todos os alunos do curso de Desenho Técnico e Projetivo (posteriormente, curso de Artes). Algum tempo depois a Musicalização Básica II, cujo conteúdo a rigor era História da Música, teve seu nome modificado para Evolução da Linguagem Musical. Meus colegas mais antigos de Departamento acharam melhor prevenir possíveis choques com o Departamento de História... (risos).
Dois ou três anos mais tarde criei duas disciplinas chamadas Ritmo e Movimento I e II, atendendo a solicitação de professores do curso de Educação Física. Trabalhei paralelamente com elas durante uns bons anos. Foi uma experiência rica pra mim, um pedido que atendi com prazer. Mas sempre com a obsessão de criar o curso de Música. Foram ao todo três projetos, três tentativas em dezoito anos. A primeira foi abortada, a segunda idem mas, na terceira, nasceu o menino! Nasceu bonito em 2009 e já está inclusive com nota máxima na avaliação do INEP: nota 5.
Daniela Aragão: O interessante é o fato de você ter ficado anos com a disciplina música, dentro das artes. Você deve ter convivido com vários olhares. Certamente te proporcionaram muitos diálogos, pintores, desenhistas.
André Pires: Verdade! Fui colega de Affonso Rodrigues, Leonino Leão, Arlindo Daibert. Tenho até medo de ficar citando exaustivamente nomes de companheiros nas Artes, quantos poderiam ficar faltando aqui!... Outro prazer foi que vários de meus alunos lá se tornaram meus colegas no Departamento e depois no Instituto de Artes e Design, enquanto professores – Ricardo, Valéria, Myrtes, Fabrício... o que me enche de orgulho. São pessoas que possuem uma trajetória respeitável na área da criação artística e também academicamente.
Também o fato de ter dado aulas a alunos que não eram músicos, mas de outra área, me deu uma espécie de elasticidade, de maleabilidade, alargou enormemente a minha própria compreensão do fenômeno musical e artístico em geral.
Daniela Aragão: Sérgio Ricardo, compositor me falou em entrevista que a seu ver a música seria a base de todas as artes. Ele destacou o ritmo criativo que se dá na composição musical, na pintura. Eu destaco isso no sentido de sua importante contribuição ao ter levado a música, mesmo para os que não a seguiram como profissão, a exemplo dos criadores da área plástica.
André Pires: É verdade. A Fernanda Cruzick, por exemplo, é uma artista plástica admirável e foi minha aluna no curso de Artes. Não optou pela carreira acadêmica. Ela veio a cantar no Unicoro, nos anos oitenta, sob minha direção. Era um coro independente. Mais tarde estivemos juntos integrando o Coral da UFJF, no qual ela já cantava sob a regência da maestrina Ana Maria Ramos. A Fernanda atuou enquanto diretora da questão visual, já que se tratavam de dois coros cênicos. No Unicoro e no Coral da UFJF tive a felicidade de também trabalhar com genial ator e diretor teatral Marcos Marinho, que também era tenor nosso, e que contribuiu enormemente com toda a questão cênica. É rico esse encontro entre áreas diferentes, no melhor sentido da palavra Rendez vous. Encontro de linguagens que se interpenetram, onde uma desenvolve a outra, afeta a outra, sensibiliza a outra. Foi uma sorte na minha vida esses diálogos intersemióticos, me enriqueceram demais.
Daniela Aragão: Quais foram as suas influências, as audições?
André Pires: Começo pela música popular, o primeiro gênero musical que experimentei. Foi o período do acordeon, até meus doze anos. A música regional, a música latino americana - o bolero, o tango - isso era uma coisa muito em voga nessa primeira fase. Até hoje me bate de maneira incrivelmente forte. O Caetano lançou há um tempo o “Fina Estampa” com esse mesmo repertório que havia marcado a minha infância. Uma vez, quando eu já tinha 23 anos, já mergulhado no gênero chamado erudito, encontrei por acaso no Paraguai com meu professor de piano, Arnaldo Estrella e Mariuccia Iacovino, sua mulher. Sentei ao lado deles no refeitório do hotel. Tinha um pessoal tocando guarânias de mesa em mesa e ele brincou: “Pergunte pra eles quanto eles querem para não tocar, que eu pago”. E eu respondi, meio sem graça: “Mestre, não vou fazer isso porque estou gostando...” O Estrella foi uma figura fortíssima na minha vida. Quando eu ia sair da universidade, como aposentado, fiz um recital de despedida que está integralmente na internet. (Se você quiser ouvir, basta digitar no youtube “André Pires recital” e clicar).
Nesse recital, fiz questão de homenagear cada um de meus seis professores de piano. Estão lá três peças do Villa-Lobos que aprendi com o Estrella, ele era especialista em Villa Lobos, de quem era amigo pessoal. Tem uma peça que estudei orientado por minha mãe, Lourdes. Um estudo de Chopin. Uma sonata de Beethoven, que estudei com Antônio [Guedes] Barbosa. Uma obra de Bach trabalhada com Homero Magalhães. Uma sonata de Prokofiev lida durante o mestrado, orientado por Myrian Dauelsberg. Cada uma delas é um tributo a um professor meu ou professora minha. Não deixei de homenagear nem mesmo uma pianista com quem cresci musicalmente bem menos do que gostaria, mas que foi minha professora durante todo o meu curso técnico e de graduação na UFRJ, Ilara Gomes Grosso. Por afeto e gratidão, meu coração pediu e eu toquei uma peça de Schumann do período em que eu era aluno dela. Foi uma espécie de coletânea das minhas grandes influências pianísticas.
No programa impresso cito ainda a acordeonista Terezinha Dias Bobbio, minha tia, o organista Walter Greb e o maestro John Neschling, pessoas muito importantes pra minha vivência e trajetória musicais, mas não através do piano. Foi um reconhecimento amplo, uma espécie de declaração de dívida, um gesto de gratidão aos meus “pais e mães”.
Daniela Aragão: Você compõe?
André Pires: Tenho algumas canções compostas na adolescência e juventude, no campo do popular. No campo erudito compus em 1976 uma única peça quando eu regia o coral de Tiradentes, chamada Receita para fazer um herói, inspirada num poema de Reinaldo Ferreira publicado no Jornal do Brasil por Josué Montello. Fiquei encantado pela força do poeta moçambicano, e fiz uma música que foi muitas vezes cantada pelo coral Manoel Dias de Oliveira, posteriormente pelo Coral Pro-Música e pelo Unicoro. Uma coisa curiosa é que doze anos depois, em 1988, o grupo de rock Ira! gravou uma música (outra, não a minha) sobre o mesmo poema Receita para fazer um herói, mas o nome do poeta Reinaldo Ferreira não aparecia nos créditos do LP Psicoacústica... (risos).
A Receita é a única peça que me lembro de ter composto no campo da música erudita. Mas fiz muitos arranjos de música popular brasileira para coro. Membros do coro me apresentavam um menu de obras que achavam interessantes para cantar a capella, repertório de fora do meu universo, e por isso eu dependia da contribuição deles. Eu ouvia e escolhia algumas peças dentro desse cardápio e fazia os arranjos. Assim nasceram arranjos que se tornaram marcas desses grupos vocais como: Anima, Comida, Olhos Coloridos, Sem compromisso, Ah! Se eu fosse feliz, Classe Média, Tristeza Pé no Chão, Jura Secreta, Balada do Louco, etc. Sempre fiz arranjos para coro a cappella, os instrumentos estão subentendidos na arquitetura das vozes. Não carece ter instrumento acompanhando!
Estive no México em dezembro de 2018 e dirigi a oficina La música popular canta y cuenta Brasil no Festival Internacional de Coros de Tlaxcala, uma cidade histórica que fica a duas horas da capital do México. Dirigi arranjos meus. Um regente e editor dos Estados Unidos, Frank Eychaner, me propôs enviar a ele todos os meus arranjos para fazer uma edição com todos eles. Ainda não enviei, porque eles estão quase todos ainda no manuscrito. Necessito digitalizar antes, inclusive corrigindo possíveis lapsos ou esquecimentos. Muitas vezes você está fazendo um arranjo e tem certeza de que aquela nota é um si bemol, mas você esquece de colocar o bemol, de tão óbvio para o arranjador. Depois, algum outro regente pega aquela partitura, ensaia e o si bemol se torna um si bequadro, natural. Isso aconteceu com uma peça de Noel Rosa, os Três Apitos. Quando ouvi o Coral da UFJF regido pelo maestro Guilherme Oliveira, numa interpretação até mais bonita do que a que eu próprio havia concebido, aconteceu uma nota falsa. Quando cheguei em casa e fui conferir a partitura, percebi que tinha esquecido de colocar o bemol. Não quero que erros como esses sejam editados pelo Eychaner, e por isso ainda não enviei o que ele me pediu.
Daniela Aragão: Você prossegue na ativa após aposentado?
André Pires: O último que fiz foi no México este ano. Estou de cabeça mergulhada no repertório do Francisco Valle e do Presciliano Silva, ambos do século 19. Presciliano, de São João del-Rei, estudou em Milão por quatro anos e Francisco Valle, de Juiz de Fora, estudou em Paris com o belga César Frank, também por quatro anos. O repertório pianístico desses dois compositores românticos mineiros, que pretendo gravar agora, foi trazido à luz durante pesquisa no meu doutorado, mas naquela época eu não tinha o tempo necessário para interpretar as obras resgatadas. Já agora, aposentado, posso ter esse prazer. No caso de Preciliano gravarei a obra completa para piano conhecida, pois só consegui encontrar três obras dele. Todo o repertório pianístico estava perdido e ninguém sabia nada além do título de uma obra dele composta para piano, Canção Infantil. E eu consegui chegar a algumas delas por uma sorte inacreditável. Um dia recebi um e-mail de um professor da faculdade de Medicina de Volta Redonda, Dr. Ricardo Ferreira. Ele se apresentou como sobrinho bisneto de Preciliano Silva. Tinha resolvido fazer uma busca na internet pra ver o que encontrava. E encontrou a informação de minha pesquisa no doutorado... Foi no meu Curriculum Lattes, achou meu endereço eletrônico e me escreveu. Ele me revelou que possuía uma mala de partituras que talvez me interessassem. Graças a esse fato, tenho três peças belíssimas desse cara, as únicas que estão agora disponíveis para os pianistas... E não posso nem dizer que fui eu quem encontrou, porque eu é que fui encontrado!
Quanto ao juizforano Francisco Valle, localizei o repertório no Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, e mais duas peças que consegui com a família. Uma neta dele, a Cida Valle, me deu cópia dessas partituras. O que tem de mais expressivo vai estar no cd. Chamo a atenção para a incrível Sonata em Dó menor, que julgo a sonata mais importante do repertório romântico brasileiro, e cujo primeiro movimento, que é genial, estava perdido. O único exemplar existente estava no Conservatório Estadual de Música de Juiz de Fora, e também nesse caso fui eu o descoberto, e não o descobridor. Um ex-aluno meu, Eduardo Tagliatti, que sabia da minha pesquisa, deu de cara com a partitura na biblioteca do Conservatório e me entregou uma cópia... Fui premiado duas vezes enquanto pesquisador...
Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?
André Pires: Na verdade é a minha forma de expressão mais genuína. Falando eu me expresso menos bem do que quando toco ou rejo. Também quando estou dando aula, que coisa maravilhosa, gratificante! Ensinar os caminhos da exegese do texto musical, sobre como pegar uma partitura morta, fria, e traze-la de volta à vida. Como emprestar o seu próprio sangue pra que aquela coisa inerte seja capaz de capaz de ganhar o mundo, virar som e emocionar outros. E sentir que não sou um túmulo, antes um canal, correia de transmissão entre os mestres que me formaram e os músicos em formação que estão bebendo através de mim as informações transmitidas de geração em geração há tanto tempo! É também uma forma de paternidade..
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