Cássia Eller: a menina azul


[COLUNISTA_NOME] 21/10/2020

Desisti de procurar pela casa minhas duas fitas cassete ancestrais. Encontrei apenas uma fotografia meio amarelada, a revelação de que por volta de meus quatro anos de idade era rotina colocar um disquinho para tocar.

A velha eletrola se posicionava bem baixinha e próxima de meu pequeno corpinho, de maneira que eu podia repetir a música desejada inúmeras vezes. Acreditei durante um bom tempo que o som que vinha do disco era feito na hora e exclusivamente para mim. Os primeiros acordes apontavam e lá em sua casa estava preparado o cantor, para mais uma vez iniciar sua sessão particular, exclusivamente dedicada aos meus ouvidos. Eu viajava então no som e no suposto ambiente do cantor. Estaria ele numa sala, num quarto, no corredor? Esse período antecede minha descoberta da “Bolsa Nova”, com João e seu “Brasil com S”, em duo com Rita Lee. Quem mais se exauriu de cantar sozinha para mim foi Amelinha,  no compacto que trazia “Foi Deus que fez você” . Completamente alucinada por esta canção eu a repetia, repetia, repetia em uníssono com a cantora. Composição que me trazia um vislumbramento de azul que eu viria instintivamente buscar em tantas audições posteriores. “Am I blue”, cantarei eternamente com Billie Holliday, que chegou a me inspirar o título de uma crônica em reverência ao tempo das fitas cassete.  Coloco Amelinha aqui e me recordo com saudade melancólica do céu quente de abundante azul de Teresina no mês de outubro: “Foi Deus que fez o céu, o rancho das estrelas/ Fez também um seresteiro para conversar com elas/Fez a lua que prateia minha estrada de sorrisos/E a serpente que expulsou mais de um milhão do paraíso”.

São Longuinho não me abençoou ainda com o resgate da velha fita cassete. Minha saudosa tia Sônia me devolveu a fita gravada nos dois lados,  para que celebrássemos juntas a primeira kitnet que eu conseguira alugar. Um registro feito aos quinze anos de idade trazia minha pureza angelical irrecuperável : “Vago na lua deserta das pedras do Arpoador/ Digo alô ao inimigo encontro um abrigo no peito do meu traidor”, “ Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves/ Dentro do coração”, “Bem te vi, bem te vi/ andar por um jardim em flor /chamando os bichos de amor/tua boca pingava mel”.

No tempo das fitas cassete eu sentia um frenesi indescritível ao conseguir conjugar o grande gravador, o microfone e as mãos tateantes nas cordas de meu pinho. O som que conseguia extrair traduzia uma certa magia que ainda não era maculada por tantas adulterações tecnológicas.

                                     

Comoção imensa me causa escutar o registro da jovem – quase menina  Cássia Eller, acompanhada por seu violão no álbum “O espírito do som”. Crua, visceral, doce e rascantemente bela a voz da cantora, que deixou com Elisa de Alencar uma fita cassete com suas interpretações juvenis.

O disco com feição de diário-sonoro (manuscritos da artista recheiam o interior do encarte), dada sua verdade e intimidade desvelada sem qualquer recurso técnico, traz na abertura “Segredo”, da ânima irmã Luiz Melodia. O violão bastante simples e correto tocado pela própria cantora, serve de base suficiente para que sua voz passeie livre por todos os vastos caminhos sonoros. A expressividade de um canto absolutamente pleno, mostra o quanto Cássia já possuía uma sabedoria instintiva. Uma afinação que não perde seu prumo em nenhuma filigrana.

Todas as dez faixas apontam para os caminhos que Cássia iria percorrer em sua meteórica carreira. Relê a parceria Lennon e McCartney em “For no one”, “Hapinnes is a warm gun” e “Golden Slumbers”.  Deixa resplandecer a eterna “little gril blue”, cheia de ternura na ausência que jamais se preenche. “Ausência”, de Ednardo  é linda de arder na voz de Cássia: “Tu lembras, a rua estreita, estrada tão antiga/E eu mostrava a ti uma cantiga/Uma cantiga antiga do lugar/Na rua, na paz da lua, o sonho se fazia/E sem querer então eu esquecia/Que já não temos tempo pra sonhar”.

Cássia é a menina azul desprotegida, com seu peito a implodir numa chama de cores: “mas que bobagem as rosas não falam simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”. Cássia é rock and roll, é blue, é jazz, é balada, é Cartola, é Billie Holliday, é Elis, é Bessie Smith, é Piaf, é o Rei Roberto, é Jacques Brel, é Jimmy Hendrix. Um amalgama de tantas sonoridades que se harmonizam.

Dispenso nesse instante minha difusa memória de suas performances corporais. Cássia transmutou-se em Cazuza, Curt Cobain, Édith Piaf, Renato Russo, Nando Reis, Riachão. “Estranho é gostar do seu All Star azul”. O encontro simbiótico com o som “alheio” chegava a tão absoluta apropriação, que Cássia Eller assinou e deixou com carimbo de registro atemporal todas as músicas em que colocou sua garganta.   

Cássia cantava em inglês e francês com perfeição de nativa. Essa resgatada fita cassete sintetiza um espectro-prenúncio de toda a aguda desenvoltura da cantora para mergulhar nos clássicos atemporais da grand chanson française.  É importante que eu convoque vocês para ouvirem comigo o lado B da fita, antes que o rápido tempo futuro das rosas intensamente rubras explodam no cenário que revestirá “Acústico”, derradeiro espetáculo da cantora: “Non rien de rien/ Non Je ne regette rien”. 

“Ne me quitte pas” deixa escorrer aqui em minha página mais um filete do azul que Cássia carrega em sua visceralidade arrebatadora. O velho guitarrista cego de Picasso derrama gotas de lágrimas azuis no seu pescoço inclinado de cansaço de vida. 

Um pedaço do girassol que fugiu correndo da tela de Van Gogh na luminosa parceria com Simone Saback: “ “Eu fui inventar/Uma flor do sol pra lhe dar/Flor do sol/Uma canção em dó bemol”. A manhã pode acordar a voz da menina-mulher-furacão com uma indomável dor  “Good morning heartache”. E no entanto  é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar. Cássia canta, canta, canta, canta.

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