Novos arranjos para um som politizado

Flavinho da Juventude reúne composições que marcaram sua vida e propõe reflexões sobre a política e a História em seu primeiro CD

Eduardo Maia
Repórter
3/08/2014
Flavinho da Juventude

"O pessoal espera um CD de samba, mas eu não botei samba, eu coloquei músicas mais politizadas". Há cinquenta anos envolvido nos acordes e composições que ganham vida através do som dos tambores e pandeiros, Flavinho da Juventude vive uma nova fase: com o apoio da Lei Murilo Mendes, lança o seu primeiro CD, Uma história de vida, no qual propõe uma reflexão sobre elementos da política no contexto da História Geral.

"Em cada estrada existe uma cilada / Em cada mata existe uma armadilha / Os tubarões invadem nossos mares / Assombrações assustam nossas ilhas", canta em América Latina, faixa que abre o CD e, em ritmo de lambada, faz uma crítica à Doutrina Monroe e o discurso de América para os americanos.

O álbum tem arranjos produzidos pelo maestro Sylvio Gomes. Acompanhado dos músicos da Orquestra de Jazz do Pró-Música, o compositor propõe uma nova roupagem a canções que marcaram sua vida, como Na Lapa, Na Glória e Bem te Vi. Nesse tom de crítica a elementos singulares da História, Flavinho destaca que a produção deste álbum partiu da vontade de mostrar um lado intelectual, fundamentado em seu interesse pela História e reflexões sobre questões raciais e da luta pelos Direitos Humanos.

"Faço parte do Movimento Negro desde 1985. Naquela época, eu não sabia que era negro, vivíamos na numa 'democracia racial para inglês ver'. Comecei a estudar o racismo, lendo autores pesados como Joel Rufino, Malcolm X e Elisa Larkin Nascimento. Fiquei muito nervoso no início, queria discutir a sociedade e levar essas discussões para a universidade e a escola. O professor negro, numa escola classista e racista, sofre muita rejeição, mas eu fiz a minha parte e não aceitei", explicou.

Ao levantar a necessidade de se questionar a sociedade com os que convive, admite que já criou inimizades por exigir que as pessoas busquem compreender o seu arredor. "Tem muitas pessoas que tem ódio de mim. Mas tem aqueles que tem amor. Na escola [Juventude Imperial] eu sou manjado, eu boto pra quebrar: aqui não! Carnaval não é luxo! Vocês que estão transformando o carnaval em luxo, e não é assim. É a oportunidade que nós da periferia temos para dialogar com a classe dominante", reforça.

Mas não é só da forma rígida que Flavinho propõe o respeito às diferenças. É com o sorriso no rosto e o valor às pessoas que por ele passam, que o compositor mostra como cativar. "Hoje eu faço a minha parte, eu compreendo as pessoas. Eu tenho a empatia, passo a me colocar no lugar do outro", diz, interrompendo, por algumas vezes, a entrevista à ACESSA.com, seja para cumprimentar um desconhecido ou se despedir de forma carinhosa de alguém que passa.

A vida de sambista e a inspiração

Sua primeira composição foi escrita em 1972, quando cursava a sexta série e exprimia a visão de um morador da periferia.

Aos 22 anos, compôs outra canção quando estudava e conciliava os estudos com o trabalho de faxineiro da escola. "Aprendi duas posições no violão, o lá menor e o ré maior. E fiz a primeira música baseada na poesia de Guilherme de Almeida, chamada Dia a Dia. Era apaixonado por uma menina e ela não sabia. E eu era o faxineiro do colégio onde eu estudava. Eu fiquei famoso pela música, teve um festival lá no bairro e o pessoal me chamou para a ala de compositores da Juventude Imperial e aceitei. Com o enredo do Zumbi, fomos tetracampeões com esse samba em 1973", conta. O samba é também assinado pelos companheiros Zezé do Pandeiro e Roberto Medeiros.

Daí em diante, levou à avenida outros sambas de igual valor. Nos anos seguintes, apresentou Folclore do Maracatu e Brasil de Rugendas e Debret, sempre enaltecendo as riquezas da cultura brasileira, recuperando elementos do nordeste e dos retratos da escravidão. Flavinho atribui sua paixão por estes aspectos não somente aos estudos, mas também ao convívio com intelectuais como Roberto Medeiros, Hegel Pontes, Zoquinha, entre outros. "Eles achavam legal aquela irreverência, iam para o bar tomar cachaça com a gente. Eu gostava muito deles, depois cada um seguiu sua vida, mas aprendi muito."

Foi das noites de Juiz de Fora que Flavinho conseguiu extrair a inspiração para muitas de suas composições. "O bom compositor tem que ser da noite. A noite inspira. Na época da noite, era época da ditadura, todo mundo tinha medo de ficar na rua e a gente não tinha. Tinha bares doidos, puteiros, todo mundo terminava a noite lá. No final da noite, a gente tomava uma canja que a gente chamava que canja de bactérias, algas e fungos (risos). Eu falo mesmo, não tenho o que esconder", revela.

Apesar da vertente boêmia, não deixou de lado a preocupação pela sua formação. "Segui a minha vida estudando e boêmio também. Eu era um músico doido, estudava todo dia. Na Barbosa Lima, tinha um lugar onde eu tocava 45 minutos e tinha meia hora para descansar. Por 20 minutos eu sentava em frente ao prédio para estudar. Com isso, eu consegui ser um dos melhores alunos do Pio XII", lembra.

Da entrada para a universidade federal em 1980, onde se formou em Química, comenta sobre as dificuldades em relação ao seu gênio contestador e pela discriminação que sofria. "Eu vou acontecendo, mas não vou cedendo para o sistema. Eu quis estudar, me formei como professor de química. Foi a maior sacanagem, levei muito tempo na federal pra formar porque sou muito brigador."

Sonhos e perspectivas

Apesar de ter sofrido dois acidentes vasculares cerebrais, em 2010 e 2012, e em dezembro do ano passado ter passado por uma cirurgia de amputação de uma perna por causa de complicações do diabetes, o mestre Flavinho da Juventude não perde o desejo de continuar sua trajetória. "Eu quero gravar essa parte de enredo que falo do Zumbi, de Euclides da Cunha, esses caras guerreiros. Esse é o meu próximo projeto", revela.

Privando-se agora de hábitos como beber e fumar, por causa da doença, Flavinho controla o diabetes, sem deixar de lado a alegria. Sua incessante busca é fazer com que as pessoas da comunidade onde mora, a Vila Olavo Costa, busquem o conhecimento. "Eu implico com eles porque eles precisam estudar. Os racistas tem um discurso de igualdade, falam que a gente inventa isso. Tenho dados históricos que provam que existe a desigualdade. O racismo "come solto" (sic), a lei que temos aí é para inglês ver".

O CD de Flavinho da Juventude está a venda Estação Digital Zé Kodak, localizada na rua Halfeld 608, e também é distribuído gratuitamente a entidades, escolas e grupos, na sede da Funalfa.

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