Daniela Aragao Daniela Aragão 9/09/2014

Simples e absurdo

Daniela AragaoTom Jobim certa vez numa entrevista disse que Frank Sinatra lhe tinha dado a fórmula infalível do sucesso, essa consistia na manutenção do mesmo repertório insistentemente ao longo da carreira, para que o ouvinte jamais se frustrasse com a inadaptação as novidades. Tom poderia fazer isso se desejasse, visto que ao longo de sua vida criativa no mínimo umas quinze composições se tornaram antológicas. Seguindo possivelmente com intuição certeira os preceitos de Sinatra, Dudu Merhy gravou despretensiosamente um disco que contém somente pérolas, standards registrados por João Gilberto, Sarah Vaughan, Johnny Alf e Tom Jobim.

Ouço sem parar e com absoluto encantamento o disco de Dudu, que emociona da primeira a última faixa. Ouso mimetizar o título do CD que inaugurou a parceria entre Guinga e Aldir Blanc "Simples e absurdo", simples e absurdo é o resultado desse trabalho de Dudu que percorre com delicadeza, simplicidade e refinamento um repertório atemporal e por isso tão fresco. Toninho Oliveira, Berval Moraes e Big Charles relêem com marca personalíssima canções como "Rapaz de bem", "Estate", "Eu e a brisa", "Nature boy", "Ana Luiza", "Brisa do mar", "Medo de amar" e "Pra ninguém chorar". O formato de trio dá primazia a um olhar jazzístico sobre os fraseados e as levadas, que contemplam o belo timbre suave e afinado de Dudu. Por vezes a escuta de tamanha beleza me traz de volta a doce dolorosa saudade de alguns amigos que já se foram, mas que de certa forma se diluem e revivem nos acordes precisos de Toninho, no contraponto grave de Berval, ou no arremate contundente de Big. Evoé salve João Medeiros, Luiz Affonso Pedreira, Reijner, Helio Quirino, Jorge Aragão (meu pai), Élcio Costa e outras almas sensíveis que souberam apreciar o gosto das belezas sutis.

Reproduzindo as sábias palavras de Rodrigo Barbosa no encarte "Um cantor sem afetação, sem trejeitos. Que é feliz por cantar. E cantar bem". Cito Caetano que reforça "A voz de alguém quando vem do coração de quem mantém toda pureza da natureza onde não há pecado nem perdão". Ouço Dudu cantar "Nature boy" uma, duas, três, indefinidas vezes encontrando em cada surpreendente audição essa pureza que tanto nos faz falta nos dias de hoje, tolos que somos, embasbacados, embaralhados, ensurdecidos por parafernálias de tecnologias. Despido de excessos ele canta com sua ânima leve, que não teme evocar proustianamente ora uma filigrana de Nat King Cole, ora uma acentuação cool comovente a la Chet Baker: "There was a boy/A very strange/Enchanted boy/They say He wandered/Very far, very far/Over land and sea/A little shy/And sad of eye/But very wise was he".Daniela Aragao

Os arranjos ressaltam a beleza da construção harmônica e melódica de cada canção. O ponto mais alto do trabalho a meu ver se dá no grau de irmandade e inteiração entre os músicos. A energia corre solta deixando em evidência o prazer do som em partilha, saboroso ágape em que não há nenhum desfile exibicionista ou hiper virtuosista, que tente colocar em qualquer instante algum desnível entre algum integrante dessa turma que toca e muito. Além do trio de base, a atuação do trompetista Mário Mendes reveste algumas faixas com toques singulares e as irmãs Barbosa, responsáveis pela beleza das vozes em "Pra ninguém chorar", emocionam trazendo uma força telúrica no canto que imprime a beleza do legado afro brasileiro.

"Estate", composição dos Brunos Martino e Brighetti, que tornou-se praticamente definitiva na interpretação de João Gilberto, ganha uma nova e muito bela leitura. A extrema suavidade da vassourinha que marcou a condução de João Gilberto, na versão cool de Dudu desponta ainda bastante sutil na levada de Big Charles. Chama-me atenção a entrada do acordeon tocado por Toninho Oliveira, que evoca a atmosfera dos tangos de Piazzolla. O clima acentuadamente convidativo a vivência da poesia se completa na faixa seguinte com "Eu e a brisa", iluminação eterna de Johnny Alf: " Ah, se a juventude que esta brisa canta/Ficasse aqui comigo mais um pouco/Eu poderia esquecer a dor/De ser tão só/Pra ser um sonho/E aí então, quem sabe alguém chegasse/Buscando um sonho em forma de desejo/Felicidade então pra nós seria".Daniela Aragao

"Medo de amar", uma das mais sublimes criações de Vinícius de Moraes imortalizada na voz de Nana Caymmi, renasce na interpretação desses músicos que dignificam a força dos versos do poeta. O piano de Toninho Oliveira em ondulações ascendentes explora texturas sonoras de uma densidade tocante.

"Reveillon", parceria de Dudu Merhy com o saudoso Paulo Violão chega pra machucar de vez meu coração. Não resisto e vasculho aqui em minha estante o lindo CD de Helinho Quirino, o "Maestro da paixão". Ouço Helinho, Dudu, Kim Ribeiro e Big Charles na versão inaugural que por si só já trazia o sabor da eternidade. Num inútil processo comparativo ouço a de ontem e a de hoje, nosso gauche poeta fala pelo coração de todas essas gauches almas: " Não meu coração não é maior que o mundo/ é muito menor/ Nele não cabem nem as minhas dores/Por isso gosto tanto de me contar/Por isso me dispo/Por isso me grito".


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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