Conheça o multi-instrumentista Israel Pinheiro
"Quando criança e ainda sem a deficiência, minha atenção era completamente voltada ao futebol, à luta, à corrida, a tudo que envolvesse o vigor físico. Após perder metade do vigor físico (o movimento das pernas), comecei a me dedicar às áreas artísticas para achar "meu lugar ao sol". Eu era adolescente e, como tal, necessitava ser aceito."
Confira, na íntegra, a entrevista com o servidor público federal, multi-instrumentista e curioso nato, Israel Pinheiro.
Carolina Fellet: As duas rodas foram um marco na grande transformação da sua vida, certo? Fale um pouco do episódio em que você pedalou exaustivamente uma bicicleta antes de iniciar a busca pelo diagnóstico?
Israel Pinheiro: Como não poderia ser diferente, ninguém planeja uma deficiência. Talvez por isso, o impacto seja tão grande e leve anos até ser digerido. Definitivamente não somos treinados para encarar nossa situação à deriva, pois a cultura nos impõe que devemos sempre "estar no controle".
Como não supunha que algo tão grave estaria por vir, levei meu cotidiano de maneira normal até o último momento em que foi possível. Uma das brincadeiras preferidas era andar de bicicleta na rua e correr com os amigos pelas calçadas do bairro. Sentindo-me "adulto", deixei de lado a minha bicicleta infantil e ousei tentar mais uma vez pedalar na da minha irmã, bem maior e mais arrojada. Não sei se foi uma percepção de momento, mas me senti em altíssima velocidade, com o vento no rosto e ao mesmo tempo um cansaço prazeroso de quem, num só dia, havia jogado bola, andado de bicicleta e brincado de pique na rua, como se soubesse que, dali em diante, todas essas atividades seriam parte de uma agradável lembrança e que, a partir de então, eu deveria ser adulto não para caber em uma bicicleta grande, mas para tentar superar alguma coisa maior: um desafio, uma nova vida.
Carolina Fellet: Você acha que "o homem está condenado a ser livre"? Por quê?
Israel Pinheiro: A frase de Sartre, que inclusive não faço questão de fingir que conhecia para parecer culto, assumindo de cara limpa que joguei no Google, me parece ampla, sobretudo sem saber o contexto em que foi dita. Assim, pelo simples recorte escrito trazido como questionamento, entendo que a liberdade REAL, se é que ela existe, é apenas a de pensamento. Temos um corpo, o que por si só já nos serve de limite, pois não suportamos organicamente grandes alturas ou grandes submersões aquáticas, por exemplo. O Estado Democrático de Direito nos impõe restrições para o convívio social, portanto, é ingenuidade pensar que somos socialmente livres. Por fim, duvido um pouco sobre a tal "liberdade de pensamento" de forma ampla, sobretudo porque somos influenciados e muitas vezes condicionados a pensar de forma X ou Y, seja por aspectos culturais, religiosos ou socioeconômicos. Além disso, meu pensamento limita-se de grande forma aos (poucos) conhecimentos que tenho sobre a vida e o mundo. Por mais que eu leia, pesquise e até visite por uns dias o Paquistão, eu REALMENTE sei o que é e o que sente um paquistanês? Provável que não... Assim, se considerarmos o pensamento livre como pensamento pleno, amplo, creio que nem assim somos livres, mas prisioneiros de nossa própria visão de mundo. Entretanto, se considerarmos o termo ''liberdade" apenas como uma não intervenção interruptiva, e somente nessa hipótese, creio sermos de fato livres para pensar.
Carolina Fellet: Você formou-se em direito, é servidor público federal e começou a cursar história, certo? Por que abandonou este curso após a segunda aula? Você é um profissional/aluno inquieto?
Israel Pinheiro: Apesar de formado e pós-graduado em direito, nunca fui fã de sala de aula. Do sexto período em diante na faculdade, por exemplo, descobri que era possível me virar com os livros, apesar de ter tido excelentes professores. Não sei explicar o motivo, mas sinto uma grande agonia em ficar "preso" em uma sala onde eu olho o livro, o código e fico pensando "Poxa, tá tudo escrito ali...".
Quanto ao curso de história, era uma dúvida que eu tinha quando fui fazer meu primeiro processo seletivo: direito, história ou psicologia? Acabei deixando a vocação falar mais alto e fui para o direito, apesar de nunca ter perdido o desejo de um dia poder fazer história como lazer. Entretanto, já mais "veterano", eu me esqueci de como era inquietante para mim estar em uma sala de primeiro período novamente e pensar que, dali para a frente, seriam mais quatro anos pela frente pelo menos.
Além disso, comecei a estudar para outro concurso, no qual fui aprovado, para o Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais e comecei a estudar para um futuro concurso do Ministério Público, o que tomou por completo meu tempo, tendo que adiar o "sonho" da segunda graduação por mais alguns anos.
Nada de arrependimento, tudo serve de aprendizado.
Carolina Fellet: Você toca instrumentos (quais?), pinta quadros, escreve superbem. Esse desenvolvimento todo o acompanha desde sempre ou tem a ver com as transições por que sua vida passou?
Israel Pinheiro: Ao longo da vida, fui dando vazão a outras potencialidades além do futebol e da força bruta. Quando criança e ainda sem a deficiência, minha atenção era completamente voltada ao futebol, à luta, à corrida, a tudo que envolvesse o vigor físico. Apesar disso, entrei para aula de violão no colégio aos oito anos de idade, através de um projeto e desenvolvi o gosto pela boa música (seja lá o que for isso).
Após perder metade do vigor físico (o movimento das pernas), comecei a me dedicar às áreas artísticas para achar "meu lugar ao sol". Eu era adolescente e, como tal, necessitava ser aceito. Apesar de cirurgias, internações e muitas dificuldades "de gente grande", eu queria fazer parte de alguma coisa, ser (re)conhecido por algo além do meu par de rodas. O violão foi uma grande conquista para mim. Através dele, fiz muitos amigos, comecei a fazer aula de violino e participei de orquestras e festivais, viajei para tocar e encontrei na música uma forma de desafogo. Por não controlar meu ímpeto artístico, comecei também a fazer aulas de desenho e pintura em ateliê, durante prazerosos oito anos, vindo a interromper quando comecei a faculdade e o trabalho.
Além do violão e violino, me dediquei musicalmente ao estudo da percussão (pandeiro, repique, tantam etc.) e cavaquinho, toquei na noite em barzinhos e perdi muitas noites de sono em prol desse vício chamado música. Hoje, de maneira menos comprometida e mais saudável, me dedico aos estudos da viola caipira com imenso prazer.
Carolina Fellet: A caridade e a espiritualidade são duas constantes em sua vida. Por que você as escolheu? Ou elas é que o escolheram?
Israel Pinheiro: A caridade, eu não diria ser uma constante, longe disso, mas, sem dúvidas, é uma meta. A espiritualidade, desenvolvida através de estudo e do trabalho na Doutrina Espírita e no Movimento Espírita de Juiz de Fora, foi de suma importância para meu amadurecimento enquanto pessoa e um excepcional núcleo onde eu pude encontrar amigos verdadeiros que me mostraram que ainda vale a pena insistir mais um pouco, que desistir faz parte, mas que recomeçar é essencial.
Seria hipocrisia e falta de caridade dizer que "elas me escolheram". Nada disso. Como a imensa maioria das pessoas, procurei meu fortalecimento espiritual no momento de dificuldade. Encontrei na fé espírita a força interior para seguir em frente e, no Movimento Jovem Espírita, formas de trabalhar pelo próximo, de sentir a satisfação de ser um pouco útil, ainda que de vez em quando.
Quando busco a caridade, no fundo, o faço por interesse: no abraço que recebo de uma criança, eu sou o mais feliz; no sorriso que vejo em alguém auxiliado, eu sou o mais alegre.
Carolina Fellet: Você tem uma grande ambição? Qual?
Israel Pinheiro: Manter-me na posição de eterno aprendiz, eis aí uma GRANDE ambição. Tenho desejos profissionais, de entrar para o Ministério Público, desejo de casar, ter uma família e aprender a tocar acordeon (sou louco por acordeon). Entretanto, não chamo nada disso de "grande ambição". Primeiro porque minha vida não vai acabar caso eu não alcance algum desses objetivos. Segundo porque não vai fazer muita diferença no mundo (a não ser no meu pequeno mundinho) caso os objetivos sejam alcançados. Terceiro e finalmente, porque aprendi que criar expectativas é a grande arma da decepção.
Carolina Fellet: Pode definir estas três palavras: vida, solidão e amor.
Israel Pinheiro: Vida = bem mais que respirar e ter sangue nas veias. A vida me aparece como um emaranhado de fatos muitas vezes aparentemente desconexos que no fim formam essa bagunça que sou. Qual a relação do direito com o sonho de tocar sanfona? Vai saber!
Solidão = uma das filhas do egoísmo. Um dos maiores problemas da sociedade contemporânea, na qual as pessoas se olham e não se veem, coabitam, mas não convivem. Na maioria das vezes, para não dizer a totalidade, não estamos sós, só estamos cegos de orgulho em achar que somos ''tão diferenciados". Obs.: sentir-se só é diferente de sentir-se abandonado.
Amor = mais palavra do que sentimento.
Carolina Fellet: Cite um pensamento ou uma frase.
Israel Pinheiro: "Se fosse fácil achar o caminho das pedras, tantas pedras no caminho não seria ruim."
Carolina Fellet: As duas rodas, antes libertadoras, agora são algozes?
Israel Pinheiro: As rodas nunca foram nada além de rodas. O que mudou foi o modo de encarar a sua necessidade ao longo da vida. Nesse ponto, quanto mais amadureço, mais me sinto livre, mesmo sabendo que uma vida só é pouco para tanto aprendizado solto aí pelo mundo e que eu ainda não consigo compreender.
É bem verdade que, com a idade avançando, o corpo já começa a não ficar tão satisfeito assim em ficar sentado o dia inteiro, a coluna reclama, as costelas doem, o pescoço endurece, mas nada como estar vivo. Somente eu posso ser meu algoz. Ninguém nem nada pode assumir esse papel, eu busco não permitir. O defeito do outro só te atinge onde falta sua qualidade, gosto de pensar assim, pois tira-se o foco do outro que é chato (e que por ser outro, não consigo mudar) e firmo o foco na minha falta de paciência, que é onde eu posso de fato intervir e modificar.
Assim sendo, as rodas estão aí. Aprender ou revoltar é opção minha. Por enquanto, tenho conseguido aprender, mas estou suscetível a falhar mais tantas vezes, não descarto essa hipótese. Só espero que quando esse dia chegar, eu recobre a consciência a tempo de voltar aos trilhos de quem está aqui para aprender, não para julgar e que meus erros sejam perdoados por aqueles que mais amo.
Carolina Fellet é jornalista e ama escrever sobre cotidiano e metafísica. Ela mantém a página Império do Mínimo no Facebook.
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