Do subúrbio para o centro midiáticoO que a representação do negro na televisão tem a ver com cidadania?
Com elenco majoritariamente negro e mulato, constituído por um número significativo de novatos ou de rostos desconhecidos na TV, Suburbia está no ar! A série é exibida desde o início de novembro – não por acaso o mês da Consciência Negra, na Rede Globo. Apresentada semanalmente, às quintas-feiras, na faixa das 23 horas, a produção de oito capítulos foi idealizada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho (de Os Maias, Hoje é dia de Maria, Pedra do Reino, Lavoura Arcaica, entre outros trabalhos) e desenvolvida por ele e pelo escritor Paulo Lins. O seriado ganhou as telinhas das casas com a aposta de ser um marco para a TV, conforme noticiou a imprensa à época do lançamento. De acordo com divulgação da própria emissora, o objetivo é mostrar histórias reais misturadas à ficção por meio da retratação de um subúrbio não folclorizado.
A trama conta a trajetória de Conceição (Érika Januza), menina pobre que deixa o interior de Minas Gerais em busca de uma vida nova, longe dos fornos de carvão, e vai parar no Rio de Janeiro, onde, tempos depois, é acolhida por uma família do subúrbio carioca. Ali ela se apaixona por Cleiton (Fabrício Boliveira, um dos poucos atores profissionais do elenco) e vira estrela de bailes funk. A história se passa na zona norte do Rio de Janeiro, em meados dos anos 1990.
Acompanhando o seriado, fui tomada por uma inquietação que agora venho dividir com os leitores internautas: é possível apresentar aos públicos as dimensões múltiplas da identidade do negro, do jovem negro morador do subúrbio, sem estereotipá-las? Afinal, nenhum indivíduo constrói suas significações a partir do nada. De um lado, referências advindas do discurso televisivo colaboram para a configuração dos indivíduos e, por extensão, das estruturas sociais. Por outro, as formas de retratação da realidade, principalmente das minorias e dos assuntos que lhes dizem respeito, estão diretamente relacionadas à promoção, ou não, da sua cidadania.
Há muitas décadas, as periferias, favelas, subúrbios fazem parte das cidades brasileiras, principalmente das maiores, inseridas nos processos de crescimento urbanístico da modernidade. No entanto, os anos 1970 e 1980, de consolidação da televisão no Brasil, foram marcados por relativa invisibilidade destes lugares e de seus cidadãos nas telas da TV. Com o tempo, o efeito zapping foi o sinal de alerta de que era necessário rever a programação televisiva, tirando do anonimato e identificando o telespectador morador de bairros pobres. Assim, a partir dos anos 1990, percebe-se que esta "ocultação" da periferia e de seus cidadãos converte-se na necessidade de "escancarar" o universo das favelas e subúrbios, principalmente em noticiários que passam a investir na linha sensacionalista.
No cinema, a representação da pobreza, em geral associada à violência, também obteve mais espaço. Filmes como Cidade de Deus (2002), Ônibus 174 (2003), Cidade dos homens (2003) e Falcão, meninos do tráfico (2006), por exemplo, estão na lista de obras de ficção ou documentário que acentuaram a presença visual de cidadãos pobres, negros, moradores de favelas e bairros de periferia nas telas. Ao evidenciar esse universo para a atenção pública, essas produções intensificaram as representações possíveis de negros da periferia (especialmente os jovens), já que estes sujeitos são, em geral, os principais protagonistas destas obras.
Entre ficção, realidade e entretenimento, questionamos, agora, as estratégias utilizadas em Suburbia para sustentar determinadas representações da juventude negra da periferia: a escolha de elenco majoritariamente negro ou mulato, a interpretação de pessoas que conhecem a realidade da periferia e não são atores profissionais, a experiência de Paulo Lins - escritor de Cidade de Deus (que inspirou o filme) - somada à linguagem televisiva estética própria do diretor Luiz Fernando. Elementos suficientes para dar um novo olhar sobre a periferia?
Com a palavra, Paulo Lins
Durante o Seminário Suburbia: O Indivíduo na Construção do Imaginário Social, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em novembro deste ano, o escritor e autor Paulo Lins falou sobre a mistura de ficção e realidade encontrada na série e a abordagem de questões socioeconômicas, espaciais e ideológicas que envolvem as populações que vivem no subúrbio.
Paulo Lins destacou que trabalhos desenvolvidos nas universidades brasileiras, sobre cultura, religião e escravidão, serviram de base para a redação do texto de Suburbia. Ao ser questionado sobre a intenção de atingir a "nova classe C", Lins garantiu que teve liberdade para compor a trama, que não escreveu pensando em um público específico, mas procurando antes referências poéticas e científicas para a composição da série.
O autor afirmou também que Suburbia não está somente contando uma história e, sim, realizando uma reflexão sobre importantes questões da realidade brasileira, como a escravidão moderna, o tráfico de drogas e a religião. Quando indagado sobre o objetivo da série ao trabalhar majoritariamente com atores não profissionais, a maioria escalada em testes de seleção realizados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, Lins foi enfático: "Achamos importante ter um elenco composto, em sua maioria, por atores negros, para retratar fielmente a realidade do país. Procuramos ver o subúrbio sem estereótipos. O cinema já faz isso, nos últimos anos, e achamos importante a televisão seguir esta tendência".
E é neste ponto que incorporamos nossa reflexão. Será realmente possível retratar o negro da periferia na TV sem estereótipos? Afinal, por mais que se trabalhe com 'não-atores', testemunhas reais da vida na periferia, a partir do momento que as luzes se acendem e a câmera é ligada, incorpora-se o personagem a ser representado. E, mais: é a representação à luz do olhar do outro, pois se recebe um texto já pronto para ser dito, reproduzido. A criação não é do elenco, mas, dos redatores da série. Mesmo buscando explorar a experiência de vida dos artistas negros e oriundos da periferia, está em cena, no mínimo, o "olhar da classe média" sobre os fatos representados. O funk, as gírias, as relações amorosas, os conflitos sociais, a violência, tudo, enfim, é mostrado segundo a visão de quem detém o poder de escrever e de dirigir o seriado, de quem tem o poder de representar. Os temas priorizados, em geral, são determinados culturalmente. Trabalhando com a experiência do telespectador, Suburbia, como outras séries e programas de TV, apresenta imagens que podem ratificar valores e pré-conceitos.
Oscilando entre a incriminação da pobreza e uma espécie de "glamourização" do negro da periferia, o seriado ganhou os lares brasileiros sob o discurso de um 'novo olhar' sobre o subúrbio e seus cidadãos. No entanto, em uma rápida análise, acreditamos que a produção diferencia-se muito mais na linguagem estética que na representação em si da periferia.
Não é nosso intuito desprezar que Suburbia cumpre papel importante ao valorizar o negro, colocando-o em evidência e, consequentemente, em debate no cenário midiático. Parece haver, também, uma preocupação em ultrapassar a perspectiva "tradicional" do discurso sobre a negritude na ficção seriada (o negro do samba, do futebol e da malandragem...). No entanto, dificilmente uma verdadeira política anti-racista poderá implantar-se em um sistema discursivo como o da grande mídia, como já preconizou o pesquisador (negro) Muniz Sodré. Isto porque a mídia organiza-se empresarialmente com motivações de lucro e poder semelhantes às de outras iniciativas industriais, sem, necessariamente, a preocupação de refletir as causas públicas ou políticas, desinteressada pelas questões da discriminação dos negros ou minorias.
Fica a reflexão. Em uma sociedade em que as relações entre os indivíduos são crescentemente perpassadas pelos meios de comunicação, a mídia ganha centralidade nas interações cotidianas. Uma realidade apresentada a partir de uma determinada angulação é capaz de formar opiniões e reforçar papéis sociais.
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Aline Maia é jornalista e professora universitária. Graduada e Mestre em Comunicação pela UFJF, tem experiência em rádio, TV e internet. Interessa-se por pesquisas sobre televisão, telejornalismo, cidadania e juventude.Também é atuante em movimentos populares e religiosos.
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