Rastros de glória
Rastros de Ódio, de John Ford, é o melhor filme da história do cinema. Nele, um homem, John Wayne, empreende uma jornada insana em busca de algo perdido. Tem a índole e a prática de um pistoleiro, a alma cética e um destino de humanista. Era o retrato fiel dos Estados Unidos, naquele período de transição entre a quase barbárie que forjou a América do Norte e a civilização, que se revelou tosca – como de resto toda pretensa civilidade.
Lembro-me sempre desse filme. Como disse, é a mais assombrosa obra cinematográfica do único século da sétima arte – período já encerrado, há pelo menos 15 anos. Lembrei agora porque a seleção de futebol dos Estados Unidos acaba de empreender uma batalha épica, perdida, contra o escrete brasileiro.
Há diferenças, é claro. Os jogadores dos Estados Unidos não buscavam algo perdido. O futebol deles nunca teve uma glória real, viveu desde sempre de façanhas isoladas, separadas por períodos enormes de tempo. Há 59 anos, por exemplo, bateram a poderosa seleção da Inglaterra, em Belo Horizonte, naquela que é considerada até hoje a maior zebra da história das copas.
Não deve ser fácil jogar futebol nos Estados Unidos. Os torcedores de lá são fanáticos por outros três esportes, considerados natos (basquete, beisebol e futebol americano), e duramente refratários a supostos “estrangeirismos” (caso do nosso velho e bom esporte bretão).
Portanto, é bastante provável que, mesmo que a seleção ianque tivesse suportado a pressão dos brasileiros, após abrir dois gols de vantagem, o feito não teria a dimensão que mereceria. O próprio Donovan, esse fabuloso jogador dos Estados Unidos, símbolo do futebol daquelas bandas, não se cansa, em entrevistas, de reclamar da falta de apoio e contra o forte preconceito que sofre pelo simples fato de gostar de levar a bola com os pés ou a cabeça – e não elevar a pelota com as mãos, rebate-la com a ajuda de um taco ou, pior, carrega-la embaixo dos braços.
Preconceito maior enfrenta o goleiro Howard. Ele é portador da síndrome de Tourette, um distúrbio que alguns consideram uma espécie de retardamento mental. Com a doença sob controle, o arqueiro é, depois de Donovan, o que há de melhor no time (em Rastros de Ódio, também há um idiota, no sentido literal da palavra: o velho Moses. Ele é, depois do personagem de John Wayne, o melhor do filme).
Donovan e Howard têm mesmo muito a ver com Wayne e Moses. São todos integrantes de um mundo que não os quer. Os jogadores nunca atingirão algo perto de um panteão de heróis pois, mesmo com todas as qualidades, não conseguem avançar nas competições que disputam. Agora mesmo, na Copa das Confederações, não foram além da espetacular vitória na semifinal, contra a Espanha, atual campeão europeu. E a sociedade americana só tem olhos para vencedores, detesta quem fracassa.
Como a seleção dos Estados Unidos ficou pelo caminho, quem espalhou pelos gramados da África do Sul um rastro de glória foi a seleção brasileira, de maneira incontestável. Uma vitória de virada estrondosa que leva o mais cético dos torcedores a prever outras glórias para daqui a um ano, nesse mesmo solo, durante uma copa do mundo.
Essa seleção de Dunga tem tudo para ser uma das melhores da história. O desafio continua sendo conquistar a simpatia irrestrita do torcedor. Tarefa difícil porque, todos nós sabemos, as dificuldades nesse sentido são de outra natureza, não tem nada a ver com a qualidade do futebol que apresentam.
Ailton Alves é jornalista e cronista esportivo
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