Terra em transe
Rio 2016 é outra história. Está longe, muito longe e, como consta na Bíblia, “a cada dia a sua angústia”. O que, por ora, todo o mundo quer, o que estará em jogo nos próximos dias, é uma vaga para a Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Nada difere os ricos dinamarqueses dos pobres habitantes de Burkina Faso ou da conturbada Honduras. É como se o mundo inteiro estivesse em transe, correndo atrás da bola e esperando que ela lhe seja útil, que a sorte lhe sorria. Após as partidas do próximo final de semana e da outra quarta-feira, a aflição e a esperança terão acabado para a maioria dos países. Alguns povos estarão já de olho em meados do ano que vem e outros mascarão o “jiló amargo da existência”, como diz o mestre Xico Sá.
O futebol explica o mundo. Nada, nem a arte, é tão significativo quando se quer entender como se forja uma identidade nacional e como é possível ferir a alma. Espere e torça, caro e cruel leitor, contra a Argentina. Se eles tropeçarem contra o Peru e perderem para o Uruguai estarão fora da Copa. Então, pergunte a qualquer argentino como se sente. Alguns lembrarão os labirintos de Borges ou as imagens de Solanas e muitos citarão um tango de Gardel, mas a grande maioria praguejará contra a bola, se sentindo o mais injustiçado e infeliz dos seres humanos.
Na Europa, continente dito mais civilizado, as coisas parecem mais tranquilas. Mas nem tanto. Dependendo dos resultados, se o fracasso vier, em alguns cantos do Velho Mundo alguém estará dizendo que há algo de podre no reino da Dinamarca (sem nunca ter lido Hamlet), que os vinhos estão azedos (mesmo na região de Bordeaux) e a alma lusitana – já por tradição e glória melancólica – ganhará mais motivos para tristeza.
Por aqui, nas Américas, um pouco acima da linha do Equador, a disputa ganhará contornos mais dramáticos ainda, porque, como é comum por essas bandas, política e futebol andam sempre juntos. No sábado, Honduras joga contra os Estados Unidos em São Pedro Sula, cidade muito próxima de Tegucigalpa, a capital do país e sede da embaixada brasileira “invadida” por um presidente da República deposto. Ninguém em sã consciência pode dizer o que vai acontecer nas arquibancadas.
Mais imprevisível só mesmo a partida da outra quarta-feira, dia 14, entre El Salvador e a mesma Honduras. Há 40 anos, esse mesmo confronto, igualmente decisivo de uma eliminatória de copa, foi a gota d’água para um rápido e sangrento conflito, conhecido justamente como a Guerra do Futebol. Na ocasião, foram a defesa de privilégios e o populismo os ingredientes da guerra. E agora? Quem lucrará ou perderá com a situação? Manuel Zelaya, o presidente deposto, ou Roberto Micheletti, o governante golpista?
Essa copa, a de 1970, precedida de uma guerra intrinsecamente ligada ao assunto, foi a única até agora com a presença de Israel. Inimigos do mundo árabe, os israelenses não são aceitos, também nos estádios de futebol, pelos vizinhos asiáticos e africanos. Por essas questões, políticas, já disputaram as eliminatórias até na Oceania e desde 1990 são obrigados a confrontar seleções europeias, muito mais fortes. Ou seja, em outros campos, Israel pode ganhar todas as guerras, expandir seu território e subjugar seus inimigos mas tão cedo não conseguirá forjar uma identidade nacional através do esporte.
Depois ainda dizem que futebol é um assunto menor.
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