SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Jesus usaria armas? O pastor André Valadão não tem dúvida disso.
"Uai, gente, se Jesus fosse para uma guerra, estivesse no meio de uma batalha, você acha que ele estaria com o que na mão? Pão?", respondeu a um seguidor que, numa rede social, questionou o que ele achava de uma pessoa falar que o messias cristão se armaria se pudesse.
Cresceram e se multiplicaram, entre líderes evangélicos, opiniões como a de Valadão, que na semana passada assumiu o comando global da Igreja Batista da Lagoinha, uma das mais influentes do Brasil. Elas não são maioria nos templos, mas a recepção mais calorosa à retórica armamentista é uma novidade que soaria deslocada duas décadas atrás.
A simpatia pela causa inflou com a escalada ideológica impulsionada pela presidência de Jair Bolsonaro (PL), como os próprios pastores admitem.
"A agenda do Bolsonaro provocou esse fato. Era uma discussão que estava muito sutil, subliminar. Quando o presidente trouxe isso à luz, foi algo num primeiro momento inovador, mas depois foi se constatando que ele tinha razão", diz o bispo Robson Rodovalho, da neopentecostal Sara Nossa Terra. Ele tem arma registrada em seu nome num rancho porque, conta, "melhor ter e usar como prevenção do que não ter e se arrepender posteriormente".
"Como na atualidade fica muito evidente que a esquerda é desarmamentista, isso acaba tornando o assunto mais palatável aos evangélicos, sim", diz o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), presidente da bancada evangélica. "Não é a agenda bolsonarista, mas a agenda esquerdista."
Para Sóstenes, evangélicos têm "um olhar equilibrado" sobre o assunto. "Queremos forças de seguranças muito bem armadas na defesa do cidadão de bem. Não somos de fazer justiça com as próprias mãos, mas também respeito o livre arbítrio para quem quer ter e usar. A liberdade do cidadão sempre será um princípio muito caro a nós."
Ele é membro da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, a igreja do pastor Silas Malafaia. A uma semana do primeiro turno, a campanha de Lula (PT) recuperou um vídeo antigo de Malafaia se posicionando contra armas e o contrapôs ao entusiasmo de Bolsonaro pelo tópico.
Em 2005, um Malafaia de bigodinho e mãos espalmadas para o céu testemunhou o antropólogo Rubem Cesar Fernandes, fundador da ONG Viva Rio, destruir um revólver a marteladas, diante de uma multidão que lotou a praça da Cinelândia na Marcha para Jesus carioca.
A campanha para devolução de armas que se seguiu ao Estatuto do Desarmamento, sancionado em 2003 por um Lula estreante no Palácio do Planalto, contou com intensa articulação evangélica, lembra o antropólogo Flávio Conrado.
Parte na época do projeto Religião e Paz, da Viva Rio, ele conta que a discordância era residual no segmento. "Não havia dificuldade alguma de dialogar sobre esse tema. Havia, na verdade, um grande consenso, por causa da alta taxa de homicídios."
"Disse Jesus: eu vim para que tenham vida e vida em plenitude. Quem crê em Cristo diz sim à vida", dizia um panfleto produzido pela Frente Brasil Sem Armas para o nicho cristão. Em parceria com Polícia Civil e Viva Rio, entidades religiosas passaram a recolher, em 2004, armamento entregue voluntariamente pela população.
"A abertura de postos de coleta e destruição de armas nas igrejas teve mais sucesso do que a entrega em delegacias de polícia", afirma Clemir Fernandes, pesquisador do Instituto de Estudos da Religião e pastor batista, também envolvido na interlocução da ONG com cristãos. "Evangélicos e armas eram um binômio impossível, sem sentido."
Não mais. O Estatuto do Desarmamento entrou em vigor no mesmo ano em que surgiu a Frente Parlamentar Evangélica. Já havia, claro, deputados críticos à ideia. Bolsonaro, então um parlamentar do PTB, era um dos mais vocais. "Parece que o Brasil está em festa, pois está para ser aprovado o Estatuto do Desarmamento. Pão e circo para o povo. Lula tirou o pão, mas está mantendo o circo. Obrigado, Lula!", discursou na tribuna, em 2003.
Não havia apoio expressivo de membros da bancada evangélica a essa agenda, contudo. Agora há. Otoni de Paula (MDB-RJ), Pastor Eurico (PL-PE) e Abílio Santana (PSC-BA), por exemplo, são vozes simpáticas a ela.
A partir de 2023, o time será engrossado pelo deputado mais votado do último pleito, Nikolas Ferreira (PL-MG). O fiel da Comunidade Evangélica Graça e Paz publicou dois anos atrás um vídeo segurando um fuzil. "Graças ao governo Bolsonaro você pode receber, ó, de presentinho de Natal", disse, para emendar: "A única coisa que para um homem mau com uma arma é um homem bom com uma arma".
Argumento semelhante ao do pastor Renê Arian, da curitibana Igreja Agnus. Ele ungiu um arsenal levado ao templo por um delegado. "Essas armas serão para nossa proteção, para guardar a população, em nome de Jesus, contra os homens maus", diz em gravação que viralizou em março.
Ainda é grande a parcela evangélica, no Congresso, avessa à pauta. A diferença é que, agora, poucos se manifestam abertamente --em boa parte para não serem confundidos com a esquerda. Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) entra como exceção. Ele já encenou um tiroteio, com direito a se jogar no chão como se tivesse sido baleado, no meio da Câmara. Protestava contra o decreto de Bolsonaro que flexibilizou em 2019 o porte de armas.
O gosto por elas é palatável ao evangelicalismo dos EUA, o que reflete a cultura armamentista do país, aponta o bispo Rodovalho. "Essa postura sempre foi defendida pela igreja americana, mas não era necessariamente seguida no mundo."
Segundo pesquisa de 2017 do Pew Research Center, 41% dos evangélicos brancos declaram possuir uma arma, contra 30% do americano médio.
O sentimento é menos disseminado nas igrejas brasileiras. Levantamento Genial/Quaest de agosto mostra que 33% dos crentes responderam que comprariam uma arma se pudessem, enquanto na população geral 30% disseram o mesmo. Já a aprovação das leis que facilitam o acesso a armas teve apoio de 35% dos fiéis e 30% do total.
Rodovalho evoca um versículo do Novo Testamento em que Jesus, na Santa Ceia, sugere que "quem não tem espada, venda a capa e compre uma espada". Nikolas Ferreira também recorreu a essa passagem do Evangelho de Lucas em debate na CNN Brasil com outro deputado eleito, Guilherme Boulos (PSOL-SP).
Armamentistas cristãos compreendem o trecho de forma literal, enquanto os que querem distância desse ideário veem caráter simbólico na fala atribuída a Jesus.
Enxergando ou não respaldo bíblico, fato é que pastores armados não são avis rara no país. Falemos só de peixes grandes.
Em 2003, o líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, apóstolo Valdemiro Santiago, chegou a ser preso por porte ilegal de uma escopeta e duas carabinas. Ele disse então que elas estavam sendo levadas para um amigo e eram de caça.
Onze anos depois, o pastor Paulo Marcelo, hoje próximo a Lula, sofreu a mesma acusação. Ele justificou que a pistola pertencia a um segurança particular.
Em abril deste ano, foi a vez do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, pastor que deixou o cargo sob suspeitas de corrupção, ter de prestar esclarecimentos à polícia. Uma arma que portava disparou acidentalmente no aeroporto de Brasília, e uma funcionária da Gol foi ferida por estilhaços.
"No contexto do bolsonarismo a sociedade deu essa guinada, e os evangélicos, como parte desse conjunto, idem", afirma Clemir Fernandes. Vide a Marcha para Jesus capixaba que, neste ano, teve a réplica gigante de um revólver, ou a edição paulista de 2019, quando Bolsonaro fez uma arminha com a mão no palco.
"Mas, para além das imagens, dados qualitativos mostram que as armas são um item de menor apelo entre evangélicos. O próprio Malafaia não renegou seu passado de ser contra as armas."
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