SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um relatório elaborado pela Aliança em Defesa dos Territórios, formada por lideranças das terras indígenas Yanomami, Kayapó e Munduruku, aponta omissão da ANM (Agência Nacional de Mineração) no processo regulatório e fiscalizatório do garimpo, o que facilitaria o processo de "lavagem" do ouro extraído ilegalmente.
O documento descreve, ainda, a situação do garimpo ilegal como um "estado de coisas inconstitucional". Esse status reconhece, segundo definição do STF (Supremo Tribunal Federal), "uma situação de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afeta um número amplo de pessoas".
Batizado de "Terra Rasgada: Como Avança o Garimpo na Amazônia brasileira", o dossiê será divulgado nesta quarta-feira (15). Na última semana, representantes dos povos que assinam o texto tiveram reuniões em Brasília com integrantes do governo federal sobre o tema.
Procurada pela reportagem, a agência respondeu que está "comprometida com a fiscalização da mineração, observando o cumprimento das determinações técnicas e legais" e que recentemente implementou medidas para "aprimorar a fiscalização e a transparência do setor".
O relatório indica diversas falhas na atuação da ANM que facilitariam a lavagem do ouro extraído ilegalmente nas terras indígenas. A autarquia é responsável pela gestão dos recursos minerais da União, assim como a regulação e a fiscalização das atividades de aproveitamento dos recursos minerais, e pode, quando necessário, interditar e paralisar as atividades e autuar infratores.
É a agência que concede a PLG (permissão de lavra garimpeira), documento que autoriza a exploração de uma área para garimpo e que só pode ser concedido a pessoas físicas e a cooperativas. A exploração deve ser limitada a 50 hectares para pessoas físicas e a 10 mil hectares para cooperativas, no caso da Amazônia Legal.
No entanto, falhas na concessão e acompanhamento das permissões se refletem em facilidades para garimpeiros que atuam de forma irregular. Uma delas é a existência de diversas PLGs ociosas, sendo que a legislação exige o início de operação no prazo de 90 dias.
Essas áreas podem ser usadas como "garimpos fantasmas", para esquentar o ouro que vem de outros lugares. "Os títulos são utilizados tão somente para lastrear o ouro extraído ilegalmente de áreas protegidas. Como o regime jurídico da PLG não exige pesquisa prévia, não há nem mesmo garantia da existência de jazida de ouro nesses polígonos", diz o relatório.
A falta de exigência de comprovação de que a área da PLG tem, de fato, minério é outro problema apontado no texto, já que só projetos de mineração considerados de larga escala têm a obrigação de apresentar essa informação.
Com isso, também não existe uma estimativa de quanto ouro poderia ser produzido por cada PLG -facilitando que quantidades imensas do minério, extraído ilegalmente, sejam atribuídas a locais que não têm capacidade de produzir aquele montante.
Além disso, na prática, a limitação a 50 e 10 mil hectares não é respeitada. Em muitos casos, são acumuladas licenças contíguas, formando garimpos com áreas muito maiores e, consequentemente, de grande impacto socioambiental.
O dossiê cita uma auditoria de 2019 do TCU (Tribunal de Contas da União) que apontou que, no estado do Pará, por exemplo, apenas uma pessoa tem 162 títulos, equivalente a uma superfície superior a 8.000 hectares.
"O TCU identificou que 'a maioria absoluta das áreas cujo permissionário detém mais de uma outorga encontra-se ociosa', ou seja, a concentração de PLGs por um mesmo titular está diretamente relacionada aos "garimpos fantasmas" e ao esquentamento de ouro ilegal".
O texto afirma que 20 pessoas detêm 47% do total de títulos outorgados para pessoas físicas, enquanto o caso das cooperativas é ainda mais grave: 82% da área autorizada está concentrada em dez delas. A maior, do Mato Grosso, detém mais de 192 mil hectares em PLGs, o que equivale a um quarto de toda a área titularizada por cooperativas.
O texto também indica queda nas ações de fiscalização realizadas pela agência, atrelada ao enxugamento do orçamento para essas atividades e à execução de recursos inferior ao autorizado.
"A Agência Nacional de Mineração tem um quadro bastante reduzido de servidores e realiza pouquíssimas fiscalizações sobre as lavras autorizadas, não verificando adequadamente, por exemplo, se os titulares cumprem todos os seus deveres", afirma Luísa Molina, organizadora do relatório e pesquisadora do Instituto Socioambiental.
Ela aponta que, para coibir a lavagem do ouro ilegal, um ponto de partida seria garantir que os proprietários das PLGs apresentem informações consistentes no seus relatórios anuais, que são obrigatórios, de modo que seja possível verificar a procedência da produção creditada a cada lugar.
Em nota, a ANM ressalta, ainda, que faz parte da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, buscando aprimorar a supervisão da lavagem de dinheiro associada à mineração, e que propôs um marco regulatório para disciplinar a aplicação da legislação voltada a esse tema no setor.
"Entre elas [medidas já tomadas], estão a criação de um painel de inteligência fiscalizatória, que permite a identificação de irregularidades e fraudes; do painel de fiscalização do ouro, que fornece informações sobre a produção e o comércio de ouro; e do sistema de primeiro adquirente, que garante maior transparência na alocação de recursos oriundos da Compensação Financeira pela Exploração Mineral", afirmou a ANM.
Na última semana, lideranças yanomami, kayapó e munduruku entregaram o relatório para representantes dos ministérios do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, da Justiça, dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos, além de Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Polícia Federal e Secretaria de Saúde Indígena.
Julio Ye'kuana, representante dos yanomami, afirma que os três povos indígenas lutam pela mesma causa. "As nossas terras estão sendo destruídas pelo garimpo ilegal. A gente precisa que os órgãos federais agilizem essa retirada dos invasores", diz.
Ele lembra que o garimpo, atualmente, está associado a toda uma cadeia criminosa, incluindo o narcotráfico, e que são necessárias bases permanentes de fiscalização nos territórios. "A gente corre risco de vida. Durante os últimos quatro anos morreram muitas lideranças por defender as terras onde vivem."
Lideranças munduruku e kayapó, que não quiseram se identificar por medo de represálias, pediram ao governo um plano efetivo e duradouro de retirada dos invasores, além de combate a sequência de crimes envolvidos na cadeia do ouro. Pedem, ainda, que os indígenas sejam envolvidos no processo de elaboração desta estratégia.
VIOLAÇÕES À CONSTITUIÇÃO
O documento destaca a natureza complexa, sistêmica e de múltiplas escalas do combate ao garimpo ilegal e aponta gargalos em outras etapas da cadeia de produção e venda do ouro. Entre eles estão a ausência de notas fiscais eletrônicas, a presunção da boa-fé do comprador e o déficit na fiscalização do cumprimento de medidas que evitem lavagem de bens e capitais por parte das DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários) -as únicas autorizadas a comercializar ouro.
Além disso, aponta que o comércio de ouro no Brasil está calcado na violação massiva de direitos humanos, "diretamente associada a ações e omissões de diferentes órgãos e entes da administração pública". Por isso, os autores argumentam que pode ser enquadrado o instituto do "estado de coisas inconstitucional".
"É possível descrever como estado de coisas inconstitucional a multiplicidade de impactos sofridos por povos indígenas e comunidades tradicionais em decorrência da exploração garimpeira intensiva e descontrolada em seus territórios", explica Molina, ressaltando que o modo de vida destas populações é afetado devido às falhas regulatórias.
Em 2022, essa classificação foi atribuída pelo STF à gestão do meio ambiente do governo Jair Bolsonaro, mas em ações que se referiam, principalmente, ao desmatamento na Amazônia e à insuficiência da fiscalização de crimes ambientais.
O relatório salienta, por fim, que a solução para as irregularidades na cadeia do ouro passa pela garantia de proteção às terras indígenas e o controle da produção e comercialização, o que estaria condicionado a uma fina articulação interinstitucional do Poder público. "Não basta simplesmente colocar equipes em campo e destruir maquinário: deve-se efetivamente desarticular a organização criminosa por trás do garimpo e inviabilizar a utilização de equipamentos logísticos que dão apoio ao ilícito."
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