A medida foi considerada pela Fundação Renova como uma saída para destravar o pagamento das indenizações, permitindo flexibilizar a documentação comprobatória de algumas categorias de atingidos, sobretudo de trabalhadores informais como artesãos, carroceiros, lavadeiras, pescadores, areeiros e outros. Também abriu caminho para o pagamento a donos de pousadas e embarcações. Os valores poderiam variar de R$71 mil até R$ 567,5 mil.
Gradativamente, mais cidades foram incluídas em novas sentenças assinadas por Mário de Paula, que garantiu em todas elas o mesmo prazo de adesão fixado para Baixo Gandu e Naque. Desta forma, o volume de recursos destinados às indenizações individuais cresceu rapidamente.
Em pouco mais de um ano, o Novel já respondia por mais de 70% de todas as indenizações pagas aos atingidos. Posteriormente, o sistema foi estendido para toda a bacia do Rio Doce. Segundo dados atualizados em julho pela Fundação Renova, já foram repassados mais de R$ 10 bilhões a cerca de 95,7 mil atingidos. Os números indicam um valor médio de R$ 104 mil por atingido.
Controvérsias
Enquanto os pagamentos ocorriam, o Novel foi alvo de críticas e contestações. As controvérsias foram novamente evidenciadas na decisão judicial que determinou seu fechamento. O juiz Cobucci reconheceu que a decisão gera inconvenientes, mas afirmou estar convencido de que o sistema não encontra amparo legal. Além disso, ele observou que há um ajuizamento crescente de ações individuais pelos atingidos os quais tiveram seu pleito negado.
O ponto central do argumento de Cobucci aponta que as comissões de atingidos criadas para pleitear a adesão ao Novel não possuem legitimidade processual. Elas seriam agrupamentos informais e não associações devidamente constituídas na forma fixada pelo Código de Processo Civil.
O juiz também observou que o funcionamento das comissões foi definido por meio de acordo firmado em 2018 para remodelar a governança do processo de reparação. Conhecido como TAC Gov, ele idealizou as comissões como entidades locais baseadas na auto-organização, por meio das quais os atingidos manifestariam seus anseios e levariam suas demandas ao poder público, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Seria, portanto, uma estrutura extrajudicial. Desta forma, o Novel teria sido criado e estendido a partir do pedido de entidades sem legitimidade para apresentar um pleito judicial, o que torna o sistema nulo.
Conforme a decisão do juiz, outro problema seria de ordem sistêmica. Ele observa que o Judiciário não teve qualquer participação na concepção da plataforma, a não ser por meio de diretivas. Todo este trabalho ficou a cargo da Fundação Renova. O juiz pontua que, legalmente, qualquer sistema utilizado pelo Judiciário precisaria ser homologado e estar sob a supervisão do respectivo tribunal.
Além disso, a instância recursal no âmbito do Novel ficou a cargo da empresa de consultoria Kearney, que foi nomeada pelo juiz Mário de Paula como responsável pela perícia. Na prática, o atingido que tivesse sua adesão negada pela Fundação Renova, poderia apresentar recurso que seria analisado pela Kearney.
Para Cobucci, foram atribuídas prerrogativas que não correspondem à função legal de perito judicial. "A Kearney exerceu atividade de cognição para aferição do direito. A função da perícia é a produção de prova técnica, para a qual o magistrado não dispõe de conhecimentos especializados. Afirmar se o atingido tem ou não direito à indenização é tarefa que cabe ao Judiciário diretamente", escreveu.
O juiz também viu problemas no tabelamento de valores por categoria. "Por mais que haja essa otimização da padronização, a situação individual de cada atingido deveria ser analisada de alguma forma", acrescentou.
Cobucci também escreveu, na decisão, que o sistema surgido com o objetivo de simplificar o processo indenizatório se mostrou burocrático e repleto de regras, registrando ainda desencontro de informações e divergências interpretativas de analistas da Fundação Renova. Em sua visão, a Justiça brasileira tem plenas condições de lidar com as repercussões da tragédia e que a inovação instituída pelo Novel não era necessária.
Repactuação
Procurada pela Agência Brasil, a Fundação Renova informou que acatará a decisão e deixará de aceitar novos requerimentos no dia 29 de setembro.
“Até a data estabelecida pela Justiça, o sistema continuará funcionando normalmente para as localidades que ainda não tenham encerrado o prazo de adesão. Também não haverá alterações nos procedimentos”, afirmou.
A entidade também assegurou que a análise de requerimentos já abertos continuará normalmente. As mineradoras também foram procuradas para comentar a decisão, mas orientaram a reportagem a entrar em contato com a Fundação Renova, já que a entidade é a administradora do Novel.
O fechamento do sistema ocorre em um momento onde estão em curso tratativas para uma repactuação do processo de reparação. Passados quase oito anos, há muita insatisfação com as medidas implementadas e acumulam-se ações judiciais envolvendo não apenas questões indenizatórias. Até hoje, as obras de reconstrução das duas comunidades mais destruídas não foram totalmente concluídas.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) chegou a pedir a extinção da Fundação Renova por entender que ela não tem a devida autonomia frente às três mineradoras.
Os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, bem como o governo federal, também já manifestaram incômodo com o andamento da reparação. Diante deste cenário, as diferentes partes envolvidas discutem um novo acordo que seja capaz de oferecer uma solução para mais de 85 mil processos judiciais que tramitam relacionados à tragédia. As tratativas são conduzidas na Justiça Federal. Foi fixada a data de 5 de dezembro de 2023 como prazo final para se chegar a um acordo.
Recurso
A implantação do novel em 2020 havia sido contestada em recurso do MPF, que apontou irregularidades, considerou alguns valores baixos e criticou a legitimidade processual de comissões de atingidos até então inexistentes. Com a aceitação do Novel sem contestações pela Fundação Renova, também foi levantada a suspeita de lide simulada, que ocorre quando o processo é aberto após acordo prévio entre advogados de ambas as partes.
A decretação de sigilo pelo juiz Mário de Paula também foi contestada. O MPF observou que dessa forma demais atingidos interessados no processo não poderiam ter acesso às informações. A instituição avaliou ainda que deveria ter sido intimada para se manifestar antes da tomada de decisão, uma vez que possui a função constitucional de atuar na defesa dos direitos difusos. Na época, o recurso do MPF foi indeferido em decisão de segunda instância.
Em uma reunião ocorrida em maio com os atingidos, o procurador Carlos Bruno chegou a levantar a hipótese de que o Novel foi criado com o objetivo de dar uma resposta ao processo aberto no Reino Unido.
“O objetivo era mostrar ao judiciário inglês que alguma coisa aqui funcionava”, disse na ocasião. Ele se referia à ação movida por atingidos representados pelo escritório Pogust Goodhead. Eles processaram a BHP Billiton, que tem sede em Londres, e argumentaram que a Justiça brasileira era ineficiente.
Com os avanços do Novel, um juiz britânico de primeira instância chegou a determinar o arquivamento do processo. Os atingidos conseguiram depois reverter a decisão. Audiências que vão avaliar se a BHP Billiton, bem como a Vale, têm responsabilidades pela tragédia estão marcadas para outubro de 2024.
Entre os atingidos, houve reclamações.
"Para quem não teve que correr da lama, que não teve a casa ou as terras duramente afetadas, as quantias podem ser bem-vindas, mas vejo que a Samarco e suas acionistas Vale e BHP Billiton estão usando o sistema de indenização para divulgar números fabulosos e estimular aqueles atingidos da linha de frente a aderir. Alguns cederam e aderiram, mas é uma proposta de exclusão. Não cobre 10% do meu prejuízo", disse à Agência Brasil, no ano passado o produtor rural Marino D'Ângelo, integrante da comissão dos atingidos da cidade de Mariana. Ele afirmou que o Novel não atendia de forma justa quem teve os maiores danos.
Vida suja de lama
A propriedade de Marino, criador de gado leiteiro no distrito de Paracatu de Baixo, em Mariana, estava no caminho dos rejeitos.
"Entendo que todos têm direito. Em Mariana, todos são de alguma forma atingidos. A prioridade deveria ser indenizar as pessoas que tiveram a vida suja de lama. Nós, que empobrecemos, ainda vivemos uma vida que nos foi imposta. Eu hoje vivo em uma moradia provisória, e minha atividade econômica vive um retrocesso", afirmou, na ocasião.
Atingidos chegaram a criticar a atuação do juiz Mário de Paula e apontaram possível alinhamento com os interesses da Fundação Renova. O comportamento do magistrado também levou o MPF e outras instituições de Justiça a apresentaram uma arguição de suspeição para afastá-lo do caso. O pedido, no entanto, foi indeferido pela Justiça Federal. Mário de Paula deixou o caso apenas em junho do ano passado, quando foi promovido. Ele foi substituído por Michel Avelar, que acabou sendo também promovido em julho deste ano, permitindo assim a redistribuição do processo para o juiz Vinicius Cobucci.
Mariana
Epicentro da tragédia, o município de Mariana foi um dos últimos incluídos no sistema Novel, o que ocorreu com uma decisão judicial do juiz federal Mário de Paula, em setembro de 2021. A medida pegou o Ministério Público em Minas Gerais (MPMG) de surpresa. Isso, porque, diferentemente do que ocorria em todas as demais cidades da bacia do Rio Doce, as indenizações dos moradores de Mariana até então vinham sendo tratadas exclusivamente na Justiça estadual. A inclusão de Mariana no Novel atendeu pedido judicial feito por uma nova comissão de atingidos registrada em cartório meses antes da decisão.
"A comissão, que foi constituída para validar esse processo em Mariana, é ilegítima. Ela não foi eleita pela comunidade", criticou, na época, o morador Marino D'Ângelo. Após a tragédia, Mariana havia sido a primeira cidade a ter uma comissão de atingidos, que foi constituída a partir de assembleias abertas a participação de todos os moradores dos distritos devastados. O exemplo foi seguido por outras cidades.
Com o surgimento do Novel, diversas novas comissões ao longo da bacia do Rio Doce foram sendo registradas em cartório, muitas das quais foram formadas por poucas pessoas, sem deliberação pública.
Para o procurador Carlos Bruno, todo atingido tem direito de apresentar suas reivindicações e de se organizar, mas ele pontua que pequenos grupos não podem pretender representar toda a região onde atuam. Ele diz que o MPF vem trabalhando com assessorias técnicas escolhidas pelos próprios atingidos em busca de um caminho para unificar todas as comissões de cada território. O procurador defende a organização popular e democrática.
“Quando algumas comissões tem o privilégio de ascender em alguns espaços, como por exemplo, peticionar nos autos e ser representante no Novel, se permite que essas comissões, que não estão abertas à população como um todo, ganhem posições de destaque. Então, para mim, o caminho para as comissões serem cada vez mais populares é aumentar a democracia interna”, destacou o procurador.
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