Dentro do cofre, no subsolo do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no centro de São Paulo, uma tela branca estampa a frase escrita com tinta preta: “A arte contemporânea é negra”.
Mais do que uma afirmação, a obra também propõe um questionamento sobre a participação do negro nas artes brasileiras, muitas vezes relegada, marginalizada ou vítima de um apagamento cultural.
A obra manifesto, do artista Elian Almeida, pode ser vista na nova exposição em cartaz no local, denominada Deidade, uma coletânea que reúne cerca de 150 trabalhos produzidos por 61 artistas negros, de diferentes períodos e regiões do país.
“[A mostra] Encruzilhadas vem justamente dessas relações territoriais, com todos esses lugares, essas regiões do Brasil. E vem também de uma intenção da exposição de mostrar como essa produção é abrangente, tanto temporalmente falando - porque a gente tem trabalhos aqui de diversos anos, diversos períodos, de diversos momentos e movimentos artísticos da história da arte no Brasil - mas também artistas de todas as regiões do país”, disse Deri Andrade, pesquisador, jornalista e curador da mostra.
Em entrevista à Agência Brasil, ele explicou o significado do nome da exposição. “Essas Encruzilhadas se dão justamente nessas relações temporais, nessas relações territoriais e também nessas temáticas, na diversidade de temáticas, do interesse desses artistas por pesquisas que são diversas”, explicou.
A exposição inédita - aberta neste sábado (16) - fica em cartaz até 18 de março. Ela é um desdobramento do Projeto Afro, plataforma que catalogou mais de 300 artistas negros brasileiros e que foi criada por Andrade.
“O Projeto Afro é um portal que começa em 2016, ele nasce de uma inquietação minha, eu diria quando eu percebo uma ausência mesmo de um lugar, de um local que reunisse essa produção de autoria negra no Brasil”, detalhou. “Em 2020, a gente lançou a plataforma. No lançamento [da plataforma], tínhamos 134 artistas mapeados e hoje já estamos com quase 350”, acrescentou.
Além de apresentar a produção de artistas negros, Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira também pretende abrir uma discussão sobre os acervos das instituições brasileiras.
“Não basta apenas que essa produção de autoria negra esteja sendo exposta, mas ela precisa também estar inserida num circuito a partir dessas aquisições, dessas obras para essas coleções. A gente sabe como essas coleções ainda são brancas, hegemonicamente brancas, então poucos artistas negros ainda estão inseridos nos acervos dessas grandes instituições. Acredito que a exposição, de alguma maneira, tenta trazer também esse debate”, opinou Andrade.
Em visita ao local, Tarciana Medeiros, presidente do Banco do Brasil, disse que a nova mostra é resultado de um edital lançado este ano. “No dia 16 de janeiro assinamos, junto com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, o edital da cultura. A exposição é fruto desse edital”, observou.
“Não tem nada mais eficiente do que aquilo que nos faz refletir, que nos faz pensar. Então, uma exposição dessa magnitude aqui na nossa casa, no CCBB, no Centro Cultural do Banco do Brasil, que é uma empresa de mais de 200 anos, é muito mais do que simbólica. É uma oportunidade de levarmos para a comunidade, de levarmos para todo o país o nosso compromisso com a promoção da igualdade étnico-racial no Brasil”, analisou.
Expografia
A expografia da mostra foi toda pensada para rediscutir a própria arquitetura do Centro Cultural Banco do Brasil, um edifício com estilo francês e ornamentação eclética, comprado pelo Banco do Brasil em 1923 para se tornar a primeira agência em imóvel próprio do banco na capital paulista.
Ao contrário do que ocorre em diversas outras mostras realizadas no local, Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira não tem início no quarto andar do edifício, encerrando-se no subsolo. Aqui, a proposta de percurso é diferente, iniciando-se justamente no subsolo do prédio.
Mostra tem entrada gratuita. foto - Rovena Rosa/Agência Brasil
“Vamos discutir uma nova forma de entender esse prédio”, disse Matheus Cherem, arquiteto e um dos responsáveis pela expografia da mostra. “O lugar do subsolo a quem pertence? Quando pensamos na branquitude, o lugar do subsolo é o ouro. Queríamos fazer uma experiência de ascensão, saindo do subsolo e indo até o último andar. Também ocupamos o máximo possível de salas aqui. As galerias, que normalmente eram de circulação, a gente resolveu colocar obras”, disse ele.
A expografia também utilizou obras para questionar o papel do edifício. Esse é o caso, por exemplo, da obra-manifesto Todo o café, de André Vargas, que foi colocada no alto, logo na entrada do prédio, com a frase “Se os pretos velhos todo o café produziram, a eles todo o café pertence”. Abaixo dela está a Bandeira Mulambo, do artista Mulambö, que faz uma nova representação de um símbolo já conhecido a partir de vozes negras.
“Não tem como negar que esse prédio representa muito os barões do café de São Paulo. A gente também vai identificar referências religiosas aqui, uma mitologia greco-romana. Logo na entrada tem Hermes [em uma decoração própria do edifício], que é uma deidade [divindade] voltada ao comércio e à comunicação entre o céu, o Olimpo e a Terra. Por isso, colocamos logo na entrada a Bandeira Mulamba [do artista Mulambö], que tem a ver com Maria Mulamba e Exú, que são entidades, deidades, que fazem essa mesma comunicação”, explicou Cherem.
“A gente tenta - sem afetar o espaço tombado pelo patrimônio - trazer um outro patrimônio, trazer uma outra memória e, como diz a obra, questionar a quem pertence esse café”, sustentou o arquiteto.
Cinco eixos temáticos
A exposição foi dividida em cinco eixos temáticos, que homenageiam cinco artistas negros. No subsolo, onde a mostra é iniciada, o homenageado é o artista Arthur Timo?theo da Costa. Uma tela autobiográfica, pintada por ele, mostra Costa ao lado de seu material de trabalho.
O núcleo foi chamado de Tornar-se e apresenta também trabalhos de outros artistas que dialogam com a produção de Costa, seja por meio de autorretratos, seja por meio de pinturas ou fotografias que apresentam o modo de produção de um artista.
“Coincidentemente, esse prédio estava sendo construído enquanto o Arthur produzia. Nas pesquisas que desenvolvemos, achamos muito importante trazer esse fato, falar sobre isso, porque o Arthur é um artista que abre exposição. É um artista emblemático para pensarmos nessa produção de autoria negra. É um artista que trazia o autorretrato enquanto elemento fundamental para a sua produção. E nesse primeiro eixo da exposição, a gente vai perceber isso e perceber a importância desse espaço de ateliê, de artista, para que essa produção aconteça, para que essa produção seja fomentada”, explicou o curador.
Do subsolo, a exposição segue para o segundo andar, onde é apresentado o trabalho de Rubem Valentim, considerado um dos grandes nomes do concretismo brasileiro. As obras aqui vistas discutem as linguagens, o modo de se fazer arte no país.
Trabalhos podem ser vistos até 18 de março - foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
No mesmo andar, encontra-se o terceiro núcleo da exposição – Cosmovisão - que apresenta trabalhos mais políticos de autores que dialogam com a obra de Maria Auxiliadora. O quarto núcleo – Orum - é dedicado a Mestre Didi e trabalha as relações espirituais e as tecidas entre o Brasil e a África.
Já o último espaço fala sobre Cotidianos e é dedicado ao trabalho de Lita Cerqueira, única artista ainda viva entre os cinco nomes homenageados. “A gente abre a exposição com um artista que se coloca, se afirma como artista, quando ele proclama um autorretrato em que ele segura seus instrumentos de trabalho, seus pincéis. E a gente encerra a exposição com a Lita Cerqueira, que é uma artista que vai dizer que é uma artista negra e que vai registrar isso em seu livro”, frisou o curador.
Além da apresentação dessas pinturas, esculturas, vídeos e documentos, a mostra também se completa com um espaço educativo, instalado no primeiro andar do prédio. Também haverá performances, laboratórios e oficinas e um espaço no qual o público poderá consultar materiais de pesquisa e acessar a plataforma do Projeto Afro (https://projetoafro.com/).
“A exposição não abre agora e não se encerra nessa abertura. Ela continuará reverberando com essas ações e com essa aproximação com o educativo”, declarou Andrade.
A mostra Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira é gratuita. Mais informações podem ser obtidas no site do CCBB.