SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) - "O Estado não respeita os direitos territoriais das comunidades, e a mineradora se vale dessa negligência para se beneficiar financeiramente às custas do nosso bem viver". A queixa da jornalista Maryellen Crisóstomo, 32, integrante da Associação do Quilombo Baião, em Almas (TO), retrata boa parte dos embates de quilombolas contra empresas ou administrações públicas.
Antes de realizar qualquer obra ou ação que interfira no dia a dia de povos tradicionais como indígenas e quilombolas, governos e empresas públicas e privadas são obrigados a consultar os moradores locais. É o que prevê o direito à consulta prévia da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
A convenção 169, que entrou em vigor em 5 de setembro de 1991, afirma que é obrigação dos governos reconhecer e proteger práticas e valores sociais, culturais, religiosos e espirituais próprios desses povos. No Brasil, que é um dos países signatários, a convenção passou a valer em 25 de julho de 2003.
No caso do quilombo Baião, certificado em 2010 pela Fundação Cultural Palmares, a comunidade cita o risco de rompimento da barragem instalada pela mineradora Aura Almas Minerals.
"A barragem de rejeitos está a cinco quilômetros da área ocupada do território e faz limite imediato com a área demandada", diz Maryellen. "Se a barragem romper agora, toda a minha família morre. Não temos conhecimento sobre o potencial devastador. Mas a barragem de rejeitos vai contaminar todo o lençol freático do quilombo, rompendo ou não. Está localizada na nascente do rio que passa pelo quilombo."
Procurada pela reportagem, a mineradora Alma Minerals nega que a barragem tenha sido construída no quilombo Baião e diz que atua em conformidade com a legislação brasileira.
O professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Maurício Azevedo, ex-coordenador da Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais, afirma que o protocolo a ser seguido nas consultas prévias é de reuniões internas em que são levantados os principais problemas, impactos e propostas para a comunidade.
"A ideia da consulta prévia é atender às demandas e à determinação desses povos sobre seu desenvolvimento, mas tentando um consenso", afirma. "Tem um processo de licenciamento ambiental obrigatório. A empresa deve avisar o Estado, e o Estado deve acionar os órgãos que acompanham. Se tiver patrimônio histórico ou cultural, [deve] informar Ipac ou Iphan, se tiver quilombolas, informar o órgão estadual, se for de competência federal, informar o órgão responsável, o Incra ou a Fundação Palmares."
O professor diz ainda que, na maior parte das vezes, as comunidades redigem seus próprios protocolos, definindo quais são os critérios e condições para a atuação externa naquele território. Foi o que fez o quilombo Baião junto à Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins.
"Sem respostas do MPF [Ministério Público Federal], a comunidade se organizou, elaborando o protocolo de consulta e a cartografia social do quilombo Baião", conta Maryellen. "Também solicitamos apoio da Defensoria Pública do estado porque as atividades na mineradora estavam avançando e nenhuma iniciativa de consulta à comunidade era percebida."
Para quilombos localizados em território urbano, o reconhecimento dos direitos enquanto comunidade quilombola enfrenta ainda mais dificuldades. No caso do quilombo Manzo Ngunzo, próximo ao centro de Belo Horizonte, os moradores souberam da chegada de uma mineradora pela televisão.
"Havia uma licença concedida pelo governo de Minas à mineradora Tamisa para explorar a Serra do Curral, que é o patrimônio cultural do município de Belo Horizonte", diz a líder Makota Kidoiale, 53. "Quando nós fomos entender que a mineração estava a 3 km da comunidade do Manzo, buscamos mais informações e descobrimos que os estudos de impacto ambiental não consideraram os impactos na cultura, tradição, religiosidade e relação social do quilombo."
"Procuramos o Ministério Público e conseguimos suspender temporariamente a mineração, mas recentemente houve uma audiência em que a mineradora tentou provar que não afetaria a comunidade do Manzo, e a consulta prévia ainda não foi realizada."
O TRF-6 (Tribunal Regional Federal da 6ª Região) acatou o recurso do MPF e suspendeu as licenças da Tamisa para exploração de minério de ferro na Serra do Curral.
Procurada anteriormente para falar sobre a questão, a Tamisa argum entou que estudos realizados durante o processo de licenciamento ambiental do empreendimento concluíram que não haveria impactos para o território, as crenças e as práticas da comunidade quilombola, visão que não prevaleceu ao final do julgamento no TRF-6. Questionada novamente pela Folha, a empresa não enviou novo posicionamento.
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