SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Atual reitor da mais prestigiada universidade do país, o médico Carlos Gilberto Carlotti Júnior, 63, avalia que a USP chega aos 90 anos, nesta quinta-feira (25), superando as expectativas de excelência acadêmica propostas na sua criação. Apesar da liderança, diz reconhecer que a instituição precisa de mudanças para atender a realidade da sociedade brasileira.
Sete anos após ter implementado a política de cotas para ingresso na graduação, a USP voltou a ser cobrada para a adoção de mais ações e estratégias para garantir a permanência e progressão de grupos historicamente excluídos da universidade. Carlotti Júnior concorda com a necessidade de adotar novas medidas, mas não diz quais devem ser implementadas nos próximos anos.
Em entrevista, o reitor também fala sobre as medidas adotadas no último ano para solucionar o déficit docente, problema que se agravou na universidade desde uma grave crise financeira em 2014 e que foi alvo de uma greve dos estudantes no ano passado. "Não tem por que haver falta de professor neste ano", afirmou Carlotti Júnior.
O gestor também comenta uma discussão importante que deve impactar a universidade nos próximos anos com o fim do ICMS, principal fonte de recursos da USP. Com o debate para a criação de um novo modelo para o financiamento do ensino superior paulista, o reitor diz que a perda de dinheiro pode colocar em risco a excelência acadêmica da instituição.
PERGUNTA - A USP chega aos 90 anos cumprindo o que se esperava para a universidade quando ela foi criada em 1934?
CARLOS GILBERTO CARLOTTI JÚNIOR - Os documentos de criação da USP definiram alguns objetivos bastante ambiciosos para a universidade: formar pessoas com excelência, fazer pesquisa de ponta e formar líderes. Eu acredito que, nesses 90 anos, a USP alcançou e até mesmo superou as expectativas do que esperavam em 1934.
Agora precisamos perseguir um outro objetivo: ter excelência com diversidade. Não podemos mais manter a mesma política de captação de pessoas que foi pensada em 1934.
Esse é um desafio para o qual a universidade começou a olhar nos últimos dez ou 12 anos, então há ainda diversas questões que precisam ser trabalhadas. Nós instituímos uma política de permanência estudantil, mas não basta apenas dar condições financeiras para o estudante que chega da escola pública.
É preciso garantir que todos os alunos terminem a graduação com as mesmas condições, independentemente da forma como entraram na USP. Nós temos uma grande preocupação com isso, de transformar a universidade para que todos se sintam pertencentes a ela.
Professores e estudantes defendem que a política afirmativa não pode se restringir ao ingresso, mas também precisa definir ações para que consigam progredir na carreira acadêmica e se verem representados em todos os níveis da universidade. Há ainda resistência em avançar com outras ações?
C.G.C.J. - Algumas questões sobre pertencimento são muito culturais. Parte das modificações que são necessárias não será feita só com documentos e regras. É preciso ter um envolvimento de toda a comunidade acadêmica para mudar alguns comportamentos.
No ano passado, por exemplo, nós estabelecemos uma política para aumentar a possibilidade de ter mais professores e servidores negros. Estamos agora fazendo os primeiros concursos com esse modelo e depois vamos avaliar o impacto real. Se essa política não for suficiente para aumentar o número de docentes e servidores negros, a universidade fará as alterações que forem necessárias.
Mas essa política vai ser suficiente para mudar o quadro atual? Entre os professores titulares, que são os que podem alcançar os cargos de chefia, há apenas um docente preto.
C.G.C.J. - Na USP como um todo, em toda a categoria docente, a parcela de professores pretos, pardos e indígenas é ainda bastante pequena. Então, primeiro, nós precisamos aumentar a proporção desses professores e depois pensar na titularidade. É preciso ter uma sequência de ações, não dá para começar pensando na titularidade porque não teríamos hoje candidatos em muitos departamentos.
Temos que promover algumas ações e depois ir buscando mecanismos para que essas pessoas façam a progressão na carreira. É como fizemos na graduação, com a adoção de cotas em 2017, e agora começamos a ver o reflexo na pós-graduação, com o aumento de mais estudantes egressos de escola pública e da população PPI [pretos, pardos e indígenas].
Precisamos pensar em estratégias que não sejam só a reserva de vagas. Estive recentemente na formatura de uma turma de medicina, de Ribeirão Preto, e descobri que poucos estudantes negros estavam prestando as provas para a residência. Conversando com os estudantes, eles disseram que não podem fazer a residência agora porque precisam de um salário maior para sustentar ou ajudar a família.
Isso me fez pensar que, após a graduação, a gente talvez precise pensar em outras políticas de apoio ao estudante. Nesse caso, não adianta reservar a vaga da residência para o estudante negro. A dificuldade de continuar o estudo não é o acesso, mas outra demanda social e financeira.
Algumas universidades federais passaram a adotar cotas para pessoas trans. A USP debate a possibilidade desse tipo de política?
C.G.C.J. - Não há um debate para cota de ingresso, mas existe uma série de ações para que todos se sintam mais confortáveis aqui na universidade. Por exemplo, em todo elevador e outros espaços da USP, estamos colocando cartazes com frases para conscientizar as pessoas sobre a diversidade e respeito. Algumas unidades não têm mais a separação entre banheiro masculino e feminino.
São várias ações que não são cotas, mas facilitam a vida das pessoas. Eu acho que para algumas populações, como é o caso da LGBTQIA+, o problema não é entrar na universidade, mas permanecer nela. Por isso, eu me preocupo mais com a permanência, com políticas para que sejam respeitados aqui dentro, do que com cotas.
Os estudantes fizeram uma greve de seis semanas no ano passado em protesto contra a falta de professores. Esse problema foi solucionado?
C.G.C.J. - Quando assumi a reitoria, nós tínhamos um déficit de cerca de 800 professores e nós liberamos a contratação para que fosse feita em um período de três anos. Esse intervalo foi definido não para a economia de recursos, mas para que as unidades tivessem tempo de planejar os concursos.
Com a greve, nós antecipamos os concursos que seriam realizados em 2024 e 2025. Essas contratações são demoradas, os processos demoram de seis meses a um ano para serem concluídos. Por isso, autorizamos a contratação de temporários para iniciar esse próximo ano letivo.
Agora, é preciso lembrar que as unidades têm liberdade para definir as contratações que vão fazer. Elas têm autonomia caso queiram esperar o concurso definitivo. Mas nós liberamos 1.100 vagas para a contratação de temporários, um número mais do que suficiente para a demanda da universidade. Não tem por que haver falta de professores neste ano.
Há anos a USP se consolidou como a instituição brasileira que lidera os rankings internacionais de qualidade acadêmica. Essas publicações sempre destacam que esse prestígio só foi possível pela autonomia financeira garantida à universidade. O modelo de financiamento da USP será alterado nos próximos anos. A USP corre o risco de perder sua posição de destaque?
C.G.C.J. - Eu não tenho dúvida. Nós somos "bem-criados", em termos de ser uma universidade criada com uma boa concepção, com professores de qualidade, alunos de excelência e técnicos administrativos muito bem escolhidos. Esses fatores são importantes para estarmos onde estamos.
Mas, certamente, esse modelo de financiamento permitiu que nós, as outras duas universidades estaduais (Unicamp e Unesp) e a Fapesp chegássemos ao lugar de destaque nacional e internacional em que estamos. Então, seria uma péssima opção do estado de São Paulo colocar em risco a excelência de suas universidades.
Quando você olha os bons exemplos de desenvolvimento social e econômico no mundo, você vê que tudo está alicerçado em boas universidades. A China, por exemplo, para se desenvolver, aumentou a porcentagem do PIB investindo em ciência, investindo em universidades, e aí ela obteve um desenvolvimento sustentável.
Eu acho que é esse o caminho que a sociedade paulista deve continuar trilhando, independentemente do governo. Isso é um projeto de Estado, é um projeto de nação. E, se tudo certo, nós vamos manter esse modelo de financiamento.
RAIO-X
Carlos Gilberto Carlotti Júnior, 63
É médico formado pela FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) da USP, onde realizou residência médica em neurocirurgia, mestrado e doutorado. É docente da unidade desde 1996, sendo seu diretor no período de 2013 e 2016. Também foi pró-reitor de Pós-Graduação da USP
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