SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Um misterioso anfíbio subterrâneo consegue produzir um tipo de leite para alimentar seus filhotes durante os primeiros meses de vida deles, revela uma pesquisa assinada por cientistas do Instituto Butantan. A estranhíssima capacidade da espécie Siphonops annulatus indica que algo parecido com o aleitamento típico de mamíferos como nós pode acabar evoluindo em animais muito diferentes, dependendo do contexto.

A produção de leite é só mais uma das esquisitices da S. annulatus identificada pelos pesquisadores do Butantan. O bicho é uma cobra-cega, um tipo muito peculiar de anfíbio para quem está acostumado apenas com rãs, sapos e pererecas. Seu corpo vagamente serpentiforme e seus hábitos fossoriais (de quem vive debaixo da terra) não se parecem com nada visto em outros animais desse grande grupo.

"Esses bichos são uma caixinha de surpresas", resume o coordenador do estudo, Carlos Jared, do Laboratório de Biologia Estrutural da instituição paulista. "Um professor da USP, o Erasmo Garcia Mendes [morto em 2001], dizia que ecologicamente elas nem são anfíbios, embora fisiológica e morfologicamente sejam, claro."

Jared e seus colegas já tinham demonstrado outro tipo de interação peculiar dos animais com seus filhotes. A equipe verificara que as cobras-cegas cujas crias tinham acabado de nascer modificavam sua pele de tal maneira que os bebês podiam se alimentar da epiderme por um bom tempo sem causar danos à mãe. Claramente, portanto, era um animal bastante dedicado ao que os cientistas chamam de cuidado parental (o trato com a cria), o que, por si só, é incomum entre anfíbios.

Em novo artigo no periódico especializado Science, um dos mais importantes do mundo, a equipe descreve as observações detalhadas feitas com um conjunto de 16 fêmeas (e seus filhotes recém-nascidos, com número entre 4 e 13 por mãe). Coletados em Ilhéus, na Bahia, os bichos foram transferidos para o laboratório e acompanhados com câmeras durante todo o seu desenvolvimento.

Foi então que os pesquisadores perceberam que os bebês tinham um grande interesse pela região traseira do corpo da mãe, mais especificamente em relação à chamada abertura cloacal. As observações revelaram que, ao menos três vezes por dia, os filhotes estavam sugando um líquido que saía dessa abertura e vinha dos ovidutos (o local por onde as fêmeas põem seus ovos). "Eles eram muito vorazes, alguns chegavam até a enfiar a cabeça na abertura cloacal", conta Jared.

Já a genitora, paciente, fica com os bebês em seu dorso e não procura comida enquanto eles estão na fase de aleitamento. E eles, por sua vez, emitem vocalizações muito agudas que os pesquisadores interpretam como um sinal de quem está pedindo o "leitinho da mamãe".

A análise publicada na Science mostrou ainda que o consumo da secreção que sai dos ovidutos da mãe é essencial para o ganho de peso das cobrinhas-cegas nos primeiros dois meses de vida.

Pudera: a composição química do leite de anfíbio é rica em gorduras, especialmente os chamados ácidos graxos de cadeia longa, como o ácido palmítico e o ácido esteárico. Somadas, essas duas moléculas correspondem a 98% dos ácidos graxos do leite de cobra-cega, enquanto correspondem a pouco mais de 40% dessas moléculas no leite bovino.

A análise das células dos ovidutos indica que as fêmeas passam por uma considerável transformação fisiológica para dar leite a seus bebês: as glândulas produtoras do fluido só aparecem quando os filhotes estão para nascer.

O que é ainda mais peculiar é a possibilidade de que o aleitamento das cobrinhas-cegas seja uma espécie de elo perdido. Acontece que, além de espécies do grupo que botam ovos, como a S. annulatus, existem também aquelas cujos filhotes nascem diretamente da mãe, como acontece no caso de certas serpentes. Nesses casos, ainda na barriga da fêmea, os filhotes chegam a ser nutridos por secreções também.

É possível que o leite produzido pela espécie que põe ovos seja equivalente a um precursor evolutivo da nutrição que acontece 100% dentro do ventre materno, diz Jared.


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