SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - As mudanças climáticas ampliam a desigualdade de gênero imposta a meninas e mulheres afetadas pela precariedade dos serviços de saneamento e higiene, destaca a indiana Anjani Kapoor, chefe de políticas públicas da SWA (sigla em inglês para "saneamento e água para todos"), parceria global voltada à melhoria de serviços para a oferta de água resilientes ao clima.

"Pense na água e no saneamento como a base de um lar. São recursos essenciais para a saúde e a dignidade. Quando os impactos climáticos abalam essa base, a segurança de todos fica em risco", afirma.

Estudo divulgado pelo Unicef em parceria com a Organização Mundial da Saúde em 2023 estima que 7 em cada 10 famílias no mundo dependem de mulheres para a coleta de água. Em países como Bangladesh, Tanzânia, Quênia, Nepal e Índia, elas enfrentam maiores riscos de assédio sexual e violência no caminho até rios, poços e outras fontes.

No Brasil, aproximadamente 100 milhões de pessoas não têm acesso à rede de esgoto, e falta água potável para 35 milhões, segundo levantamento do Instituto Trata Brasil com base no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Esses desafios afetam o acesso a educação, renda, saúde e bem-estar, de acordo com a especialista.

"Impactos desiguais ressaltam a urgência de uma adaptação climática que leve em consideração perspectivas de gênero e raça. Com políticas e investimentos que valorizam a liderança feminina e ampliam o acesso das mulheres a esses bens, teremos um progresso rumo à igualdade de gênero e à capacidade de lidar com essas vulnerabilidades [climáticas]", diz.

A iniciativa esteve no Brasil para participar de painéis e discussões técnicas sobre métricas de adaptação e engajamento político na COP30 e lançou o documento "Crises Convergentes e Oportunidades Potenciais: Gênero, Clima, Saneamento e Água", que apresenta aos países caminhos para ações adaptativas em todos os níveis de governança, em parceria com o UTS Sydney e o governo da Austrália.

PERGUNTA - A agenda climática tem muitos tópicos. Por que discutir saneamento básico e acesso à água potável na COP30?

ANJANI KAPOOR - Água e saneamento são essenciais para a vida e profundamente afetados pelas mudanças climáticas por meio de secas, inundações e danos à infraestrutura. Quase 90% dos desastres climáticos envolvem água e, somente em 2024, 40 milhões de pessoas foram realocadas devido a crises relacionadas à água. Por isso, sistemas de água e saneamento resilientes e com perspectiva de gênero são ferramentas essenciais para a adaptação às mudanças climáticas.

P. - Há diferenças entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos a respeito desse debate?

AK - Os países de baixa renda enfrentam maiores riscos decorrentes de choques climáticos se seus sistemas de água e saneamento forem frágeis e se a governança for limitada. Eles também podem apresentar desigualdades sociais mais acentuadas, o que dificulta a recuperação. Embora tenham contribuído menos para as emissões históricas, sofrem os impactos mais severos relacionados ao clima.

Os países de alta renda geralmente têm infraestrutura mais robusta e redes de proteção social mais sólidas, mas grupos marginalizados ainda enfrentam desafios. Uma adaptação eficaz exige a superação dessas lacunas em nível global por meio de financiamento justo e compartilhamento de tecnologia para apoiar os mais necessitados.

P. - Como a questão racial se relaciona com outras desigualdades no acesso à água e ao saneamento?

AK - As disparidades de renda e as desigualdades sistêmicas levam ao acesso desigual ao saneamento e a problemas de saúde relacionados. Comunidades indígenas e ribeirinhas frequentemente acessam água contaminada, o que agrava os desafios econômicos e de saúde.

Esses padrões são exemplos de racismo ambiental, em que grupos marginalizados arcam com encargos ambientais desproporcionais. Abordar essas questões exige políticas e investimentos direcionados que apoiem os mais afetados, promovendo equidade e maior resiliência para todos.

P. - Por que governos não colocam essa como uma das pautas prioritárias?

AK - Historicamente, água e saneamento eram vistos como questões técnicas, não como prioridades estratégicas de clima, o que resultava em subfinanciamento e baixa visibilidade. A igualdade de gênero era tratada como um aspecto social secundário, não como um fator fundamental de resiliência.

A COP30 indica um reconhecimento crescente de que sistemas de água e saneamento resilientes e sensíveis ao gênero são centrais para uma adaptação eficaz e justa. Parcerias como a SWA elevam essas prioridades no âmbito político, garantindo que os compromissos se traduzam em ações concretas, adaptadas às necessidades de cada país.

P. - Há países em que as mulheres estão na linha de frente da gestão de água e recursos naturais, como é o caso da Índia, onde a senhora nasceu. Quais os impactos da liderança feminina?

AK - Exemplos em Bangladesh, Tanzânia, Quênia, Nepal e Índia mostram que promover a participação das mulheres resulta em melhores serviços de água e saneamento, avança a igualdade de gênero, apoia a criação de empregos e melhora os resultados em saúde e educação, fatores que contribuem para uma maior resiliência climática.

Por meio da gestão comunitária, de iniciativas empresariais e da defesa de políticas públicas, as mulheres ajudam a garantir manutenção, transparência e acesso justo, reduzindo as interrupções durante choques climáticos.

P. - Um dos documentos aprovados na COP30 foi o Plano de Ação de Gênero e Clima. O que ele prevê e qual seu impacto prático para as mulheres e seus países?

AK - O Plano de Ação de Gênero e Clima é um divisor de águas. Não é um gesto simbólico, trata-se de garantir que mulheres, meninas e pessoas de outras identidades de gênero sejam ouvidas e se beneficiem diretamente das ações de adaptação climática, especialmente de água e saneamento.

Ele também estimula o uso de informações sobre gênero que destacam como mulheres negras, indígenas e rurais são as que comumente carregam os fardos mais pesados, por exemplo, passando horas coletando água e enfrentando riscos. O documento visa ajudar governos a desenharem políticas e orçamentos sobre o clima que facilitem os desafios diários das mulheres e invistam na sua liderança. Todos saem ganhando com sistemas mais igualitários e fortes.

P. - O gênero também se destacou durante as negociações em termos linguísticos. Por que restringir a inclusão de gêneros neutros ou não binários mobiliza tanto alguns países?

AK - A linguagem inclusiva em políticas climáticas importa porque identifica quem é visto, reconhecido e protegido. Quando as políticas não incluem explicitamente não binários e outras identidades de gênero, deixam de fora grupos que enfrentam desafios únicos. Este tipo de exclusão enfraquece políticas e as torna menos justas e efetivas.

P. - Que outros pontos de decisão do documento final da COP30 contribuem para o acesso à água potável?

AK - As decisões da COP30 colocaram água e saneamento no centro do Objetivo Global de Adaptação, com nove indicadores dedicados, o tornando o setor mais bem representado.

No entanto, apesar desse progresso, as preocupações com o ritmo e a escala do financiamento climático e a ambição geral permanecem. Sem financiamento adequado e previsível, mesmo estruturas bem elaboradas correm o risco de não gerar impacto real.

RAIO-X | ANJANI KAPOOR, 39

É chefe de políticas públicas da SWA, parceria global sediada pelo Unicef. Com 16 anos de experiência em políticas públicas e engajamento comunitário, atua junto a ministros, chefes de Estado e agências da ONU para fortalecer o debate sobre justiça hídrica e climática, com foco especial na intersecção entre gênero e clima.

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