SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - José (nome fictício) conta que tinha 16 anos quando se cansou da trajetória pautada pela pobreza em uma favela do Rio de Janeiro dominada por uma facção do crime organizado. Sem dinheiro e tomando uma negativa atrás da outra na busca por trabalho, ele diz que enxergou no tráfico de drogas uma oportunidade.
Quinze anos mais tarde, José afirma à Folha de S.Paulo que viu quase todos os amigos de infância morrerem no crime e que, apesar de ser respeitado na comunidade, se sente um prisioneiro nela porque sair até para ir à praia é acabar preso ou morto. Ele diz que, se não fosse "pichado" (procurado pela polícia) e tivesse uma oportunidade de um emprego bom, sairia do tráfico.
Essa motivação para entrar no tráfico de drogas e o desejo de abandonar a vida no crime colocam José no grupo majoritário dos traficantes ouvidos pelo Data Favela para a pesquisa Raio-X da Vida Real, que entrevistou 3.954 homens e mulheres que trabalham no crime em favelas e comunidades pobres de 23 estados do Brasil.
O estudo, inédito, apontou que 6 a cada 10 deles dizem que sairiam do crime se tivessem uma oportunidade. Entre as motivações mais citadas estão diferentes formas de obter renda de forma lícita: abrir o próprio negócio, conseguir um emprego com carteira assinada ou um trabalho com flexibilidade. Metade deles afirma ser a questão financeira o principal impedimento para deixar a atividade criminal.
A pesquisa também indicou que 6 a cada 10 afirmam ter entrado para o crime por necessidade financeira enquanto 17% o fizeram em busca de admiração e respeito, roupas e celulares caros ou pela emoção e curiosidade.
A maioria (63%) recebe mensalmente até dois salários mínimos (ou até R$ 3.040) e apenas 2% ganham mais do que R$ 15.200 por mês. Com isso, 1 a cada 3 destes traficantes mantém atividades remuneradas lícitas para complementar sua renda no crime (ou vice-versa).
"A gente fez a pesquisa para mostrar quem são essas pessoas. Por isso, a gente não quis falar de criminalidade, mas de outros diversos assuntos, não para passar pano, mas para levar o debate para o lado humano", afirma Marcus Vinicius Athayde, copresidente do Data Favela.
Ele explica que os pesquisadores eram todos das comunidades onde realizaram as entrevistas, o que lhes possibilitou acesso aos traficantes armados, mas também a trabalhadores de apoio, como os responsáveis pela contabilidade e pelo preparo e embalagem da droga.
O Data Favela foi fundado em 2013 numa parceria da Cufa (Central Única das Favelas) com o Instituto Locomotiva. Esta é a primeira pesquisa do instituto sob a administração exclusiva da Cufa e da Favela Holding.
Apesar de ter uma amostragem grande, com quase 4.000 entrevistados, o fato de não se saber qual é a quantidade de pessoas que trabalham para o tráfico em favelas do país nem sua distribuição em território nacional torna impossível aferir a representatividade da amostra.
Para o sociólogo Gabriel Feltran, diretor de pesquisas no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), na França, e professor titular da Sciences Po, em Paris, a pesquisa é importante mesmo assim por ser uma iniciativa pioneira de produção de evidência sobre o tema. Os resultados, diz, confirmam o que os estudos qualitativos já apontavam.
Não posso ir à praia ou sair pra coisas simples, como comer com a minha família num restaurante, porque tenho medo de ser preso ou morto. Não é a vida que eu queria pra mim
traficante entrevistado na pesquisa
Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense, também reconhece nos dados o que a literatura acadêmica sobre violência e criminologia indica. "São dados que contribuem para a desconstrução dessa figura achatada e homogeneizada de um inimigo público porque mostra que essas pessoas têm trabalhos formais, estão ali porque, na maioria dos casos, precisam gerar renda e não tiveram outras oportunidades", afirma.
Feltran afirma que essas carreiras da operação "mais baixa do varejo da droga não geram ascensão social, como acredita o senso comum". "São muitíssimo poucos os que conseguem ter alguma mobilidade social no crime, assim como acontece no mundo do trabalho lícito", afirma ele, que pesquisa crime organizado e é autor de "Irmãos: Uma História do PCC" (Companhia das Letras).
Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora do Centro de Estudos da Favela (Cefavela), avalia que a pesquisa traz o mesmo perfil operadores baixos do tráfico dos estudos acadêmicos: homens (79%), jovens (50% têm entre 13 e 26 anos), negros (74%) e de baixa escolaridade (42% não completou o ensino fundamental).
Trata-se do perfil dos brasileiros que mais morrem vítimas de homicídio e ainda da maioria das pessoas encarceradas, aponta Nunes Dias, coautora do livro "A Guerra: Ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil" (Todavia).
"Há uma desigualdade gigantesca dentro do crime. Enquanto os discursos focam no negócio bilionário, os jovens que estão nas favelas são mal remunerados e os que mais se arriscam", diz ela.
Segundo Feltran, quem ganha muito dinheiro com o mercado ilegal de drogas não está nas favelas. "O que a pesquisa mostra é uma parte deste mercado colocada na linha de frente, no conflito violento: adolescentes e jovens muito vulneráveis e que não entraram para o crime porque não têm um bom coração, mas porque este é um universo que oferece recursos materiais e simbólicos."
Ele cita a lógica de pertencimento que o crime oferece e que entrelaça poder, respeito, armas de fogo, sexo, carros e baladas.
O psicólogo Emerson Ferreira conhece bem essa história. Ele se tornou traficante para ter mais dinheiro e acabou preso. "Venho de família pobre e comecei em subtrabalhos, ganhando muito pouco. Minha aventura no tráfico foi como um freelancer para uma renda extra", lembra.
"Eu queria ser alguém melhor e, nesta fase da minha vida, ser alguém melhor era ter mais dinheiro, e não seguir os passos dos meus pais que trabalhavam para sobreviver", conta ele, hoje diretor da Associação Reflexões da Liberdade, que opera na reinserção de egressos do sistema prisional.
"O crime não é só escolha, ele é sintoma. A pobreza é o maior cooptador de jovens para o crime, e a dignidade é a melhor política de segurança pública", avalia ele.
A pesquisa mostrou que 54% dos entrevistados já haviam sido presos uma (32%), duas (15%) ou mesmo três vezes (7%). Outros 57% responderam que tinha parentes presos ou egressos do sistema prisional.
Para Athayde, do Data Favela, a pesquisa mostra que trabalho e educação são duas chaves de mudança para esses traficantes. "É preciso pensar em políticas de empregabilidade e de reinserção das pessoas que saem do crime a partir do emprego", diz. "Quando a gente pergunta o que a pessoa teria feito de diferente na sua vida, 44% dizem que teriam estudado mais. Então, o papel da educação é importante."