SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A epidemia de violência de gênero que assola o país faz com que o medo gerado molde as decisões cotidianas de milhões de mulheres sobre trabalho, estudo, mobilidade e até sonhos. É o que diz a demógrafa Jackeline Romio, mas também é o que apontam índices de violência.

No Brasil, 1.492 mulheres foram assassinadas por serem mulheres em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o pior índice desde 2015, quando a lei que tipificou o crime foi sancionada.

Em São Paulo, antes mesmo de encerrado o ano de 2025, a capital já bateu o recorde de feminicídio. São 53 mulheres assassinadas em decorrência do crime do ódio. Os números revelam apenas a ponta de um iceberg.

Nesta semana, casos de extrema brutalidade chocaram o país. Tainara Santos Souza, 31 anos, foi arrastada por um quilômetro por Douglas Alves da Silva, 26, e teve as pernas amputadas e está internada em estado grave. Dois dias depois, outra mulher foi baleada enquanto trabalhava pelo ex, que usou duas armas, na zona norte de São Paulo. No Rio de Janeiro, as servidoras Allane de Souza Pedrotti Mattos e Layse Costa Pinheiro foram brutalmente assassinadas dentro do Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca) do Maracanã, na zona norte, por um ex-subordinado que, segundo relatos, não aceitava ser chefiado por mulheres.

Para Romio, pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e consultora em gênero da FES (Fundação Friedrich Ebert) Brasil, prevalece o sentimento de impunidade. Ela destaca que exploração das imagens das mulheres podem dessensibilizar e até incentivar outros crimes.

*

*Folha - Brasil enfrenta uma epidemia de feminicídio?*

*Jackeline Romio -* Nós estamos em uma epidemia de violência de gênero, seja o feminicídio, seja a violência sexual, seja o homicídio, que seria a morte violenta de mulheres, e suicídio, que tem aumentado. Todos esses tipos de violência contra a mulher já estão no patamar que deve ser vigiado. No Brasil, temos os dados da vigilância aos casos decorrentes da violência. Podemos dizer que a violência de gênero nas suas diversas facetas já alcançaram, desde 2010, níveis que devem ser acompanhados como epidemias. Eles saem de qualquer expectativa do que tínhamos anteriormente. Em relação ao feminicídio, só aumenta e vai aumentar.

*Folha - Há 10 anos, as mulheres estavam mais seguras do que hoje?*

*Jackeline Romio -* Não. Há muito tempo as mulheres não estão seguras no Brasil e em nenhum lugar do mundo. A morte é registrada, por isso que a morte é utilizada como indicador na saúde. Outras violências não chegam a ser capturadas por nenhum tipo de serviço público. Não chega [a agressão], mas a morte vai ser registrada. Temos dois eventos que, em geral, são registrados: o nascimento e a morte. O que acontece entre um e outro pode não ser registrado. E, se aumentou o fim, aumentou o que veio antes. Aqui, vemos a ponta do iceberg e, embaixo, há uma rede de outras violências que também aumentaram, mas que podem não ter sido captado porque o serviço não atendeu.

*Folha - E por que não atendeu?*

*Jackeline Romio -* Porque não foi denunciado, investigado, não foi percebido pela mulher. Isso é uma questão porque vemos que, em geral, existe um questionamento de até que ponto aquela agressão é suportada até que se entenda que se trata de uma violência. As pessoas pensam, as vezes, que é agressão quando a mulher ficou roxa ou perdeu dentes. Também é preciso lembrar que é uma dor quando a mulher chega no hospital e tem que reconhecer que aquilo é resultado de uma violência conjugal. É uma descoberta de que ela está em uma relação de violência. Para isso, a rede tem que estar funcionando porque, geralmente, ela vai chegar pela área da saúde. Na saúde, ela vai ter que ser encaminhada e, para isso, toda a rede precisa estar encaminhada, como jurídica e psicológica.

*Folha - Isso funciona?*

*Jackeline Romio -* Na maioria das vezes, não. A sociedade mostra que ser uma vítima de violência é algo em que ela se colocou. Ela tende a viver essa revitimização porque ela está nessa relação violenta, porque ela não se separa. Ela volta para casa sem ter dado continuidade à ação necessária e espera. Nesse tempo, pode vir a morrer. É um crime de extrema covardia, um crime premeditado.

Não tem como uma pessoa que conhece todo o cotidiano da outra se safar. A chance de se defender de um feminicídio é muito pequena, a não ser que tenha uma intervenção. A vítima convive no mesmo espaço físico que o agressor, que conhece os horários, dorme na mesma cama, pode estar controlando seu celular, a senha do banco. O controle dessa rotina faz com que essa violência letal seja quase que impossível de ser barrada se não houver uma intervenção.

Se o estado não mediar essas relações, ele está sendo conivente. E isso estimula os maus-tratos porque a pessoa sabe que não vai acontecer nada. Os agressores contam com a omissão do Estado, com o respeito que vão receber da mídia, que conta a história do agressor e produz filme. Vemos, por exemplo, o caso do Lidenberg com a Eloá [em 2008, quando Lindenberg Alves não aceitou o fim do namoro com Eloá Pimentel, de 15 anos, invadiu seu apartamento, a fez refém e depois a matou]. Ele conseguiu ficar cem horas ao vivo falando o que queria, mandando notícias pela mídia.

*Folha - Você é contra a exposição do agressor, da identidade?*

*Jackeline Romio -* Eu sou contra a idolatria do agressor, dando mais espaço para ele do que para a história da vida das mulheres que foram agredidas. Hoje, o agressor tem 800 seguidores. Aí, ele mata uma mulher e amanhã tem um milhão de seguidores. Vivemos em uma sociedade que engaja através do ódio. Engaja através da violência. Quais eram os projetos de vida da vítima que foram interrompidos? Quantas vítimas ocultas existiram para cada óbito dessa mulher? Essas meninas são da camada popular, na sua maioria. Elas são chefes de família. O que acontece depois de que se retira essa mulher dessa família, dessa comunidade? Eu acho que falta isso. Não se fala nada sobre ela. Mostra um corpo dilacerado, que aí atende a todo o sadismo social de ver uma mulher sendo arrastada. Não vejo qual é a necessidade de mostrar esses vídeos, sinceramente. É como se você estivesse agredindo essa mulher a cada reprodução desse vídeo. É sádico e isso estimula novos crimes, na minha opinião.

*Folha - Há mudanças no perfil do feminicídio ao longo dos anos?*

*Jackeline Romio -* A concentração do uso de armas de fogo em crimes contra mulheres aumentou: se antes eram entre 20% e 30% dos casos, hoje esse número subiu consideravelmente, chega a cerca de 40%. Isso demonstra o aumento da letalidade. E é por isso que, hoje, podemos esperar por uma letalidade maior. A idade da vítima também tem variado mais. O crime não se concentra mais com as mulheres entre 15 e 29 anos. Temos mulheres com mais de 40 anos e idosas que representam uma parcela importante entre as mulheres assassinadas. Esse perfil de idade está se ampliando mais. Isso demonstra que, em toda a fase da vida da mulher, a violência acompanha. E a gente também está transitando numa sociedade mais envelhecida, com mulheres que estão vivendo mais, tem uma expectativa de vida maior. Por isso, também precisamos pensar na violência de gênero contra mulheres idosas.

*Folha - É possível afirmar que os crimes contra as mulheres são mais brutais?*

*Jackeline Romio -* O que configura o feminicídio é a crueldade e a quantidade de violência para matar um ser humano. No crime de ódio não basta você exterminar aquele ser. Você desfigura, principalmente, os rostos dessas mulheres. Não é uma facada, são diversas. Não é um soco, são 60 socos. É uma pessoa que atropela a outra e sai arrastando. São corpos jogados no meio da rua. É uma crueldade que se aplica para exterminar essa vida. A quantidade de violência é irreal e é superlativa. Ela é muito maior do que uma criminalidade comum a ver com a raiva, com o ódio, com a vontade de exterminar não só aquela mulher, mas todo o coletivo de mulheres.

*Folha - Que consequências sociais essa violência traz, além da morte das vítimas?*

*Jackeline Romio -* É uma forma de submeter todas as mulheres. Quando eles matam dessa forma uma mulher, eles estão matando todas as mulheres e mostrando para as mulheres que é isso que vai acontecer. Isso cria um medo social.

O feminicídio não é apenas um crime individual: é uma violência com efeito coletivo. O medo limita a mobilidade, as oportunidades de trabalho e estudo, a liberdade de sair à noite ou viajar. Isso reduz drasticamente a vida social e econômica das mulheres. E, para muitas, significa desistir de sonhos -- faculdade, emprego noturno e da independência.

*Folha - E qual a mensagem destes crimes?*

*Jackeline Romio -* Mulheres, se vocês se separarem, vocês podem morrer. Se você for lésbica, você pode ser estuprada coletivamente. Se você recusar relações sexuais, se você recusar organizar domesticamente uma casa, você pode morrer.

Isso são as mensagens coletivas que o ato individual pode causar. Por isso é necessário muito cuidado quando retratamos esses feminicídios individualmente. Eles trazem um componente coletivo, vem como uma justificativa para eliminar essa mulher e mandar uma mensagem social de qual é o lugar da mulher. Hoje, muitas jovens têm medo.

*Folha - Na luta contra violência contra a mulher temos visto o surgimento de leis criticadas por especialistas, como o uso de spray de pimenta, que foi autorizado no Rio de Janeiro por mulheres. Como a senhora enxerga isso?*

*Jackeline Romio -* Políticas públicas precisam de evidências científicas. A questão do spray é ambígua. E, pior: pode aumentar o grau de violência. Se o agressor estiver armado, a reação pode levar a uma tragédia ainda maior. Nada garante que você vai conseguir utilizar o spray de pimenta. O que pode acontecer? Aumentar o número de feminicídios. Você não sabe exatamente qual é a munição do seu agressor. Ele pode estar com uma arma e talvez não fosse isso que pudesse acontecer.

*Folha - A questão de gênero, classe social e raça influencia quem é mais vulnerável ao feminicídio?*

*Jackeline Romio -* Sem dúvida. Mulheres negras, indígenas e periféricas concentram uma interseção de violências: racial, econômica e de gênero. Essa sobreposição torna o risco de violência, agressão e morte significativamente maior. A vulnerabilidade social, a dificuldade de acesso a serviços públicos, a precariedade de transporte, a ausência de redes de proteção: tudo isso amplifica o risco.

*Folha - Ainda existe uma percepção de que a apatia prevalece na sociedade. Por que isso não muda?*

*Jackeline Romio -* Os efeitos da transformação dessa cultura machista para uma cultura de igualdade de gênero, ela vai demorar para a gente perceber. Ela move muito devagar. As normas sociais são estabelecidas através de diversos mecanismos.

*Folha - E a impunidade? Que papel ela desempenha nessa 'epidemia'?*

*Jackeline Romio -* A impunidade é um dos pilares que sustentam esse ciclo. No Brasil, apenas cerca de 38% dos homicídios são resolvidos --inclusive os feminicídios. Enquanto isso não mudar, mesmo com leis rigorosas, os crimes continuarão acontecendo. A sanção precisa ser real, efetiva; e precisamos investir em prevenção, em educação e na desnaturalização da violência de gênero.

Precisamos que o crime seja julgado. Precisamos de 100% dos casos resolvidos. Para que essas pessoas paguem pelos crimes que elas cometeram e não estimulem os outros a entenderem que podem fazer, que não vão ser criminalizados por isso. Então, se o feminicídio for reprimir e erradicado também diminui a mortalidade masculina e diminui a incidência de encarceramento masculino também. Esse homem não precisa cometer esse crime. Ele pode ser barrado antes.

*Folha - Qual o caminho para tentar melhorar os índices?*

*Jackeline Romio -* A erradicação da violência depende de três partes: prevenção, sanção e punição. Não adianta discutir só punição -- a prevenção é a maior parte. Precisamos de políticas públicas baseadas em evidências, de informação desde cedo, de uma rede que funcione e permita que a mulher perceba a violência antes do fim do ciclo. Também é essencial enfrentar a cultura patriarcal, aumentar a representação das mulheres nos espaços de poder e garantir o empoderamento econômico feminino. Sem transformar os símbolos, sem mudar as normas sociais, a violência continua se reproduzindo, mesmo com leis mais duras. O caminho não é só punir; é prevenir para que a gente não continue enterrando mulheres.

*Raio-X*

Jackeline Ferreira Romio, 44, doutora em demografia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e consultora em gênero da FES Brasil. É autora da pesquisa da FES "Quem são as mulheres que o Brasil não protege: uma análise interseccional dos feminicídios", lançada no dia 26 de novembro na Câmara dos Deputados do Brasil.

Tags:
Pesquisadora